Alvalade antiga

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2 Comentários

Alvalade antigaQuem, hoje, jornadeia, utilizando os modernos meios de transporte, pelas estradas, cujo pavimento parece feito à colher, e transpõe, comodamente, largas e fundas torrentes, mal pode compreender os tormentos dos nossos antepassados, em épocas não muito recuadas.

As terras alpestres, como tortuosas veredas, terrivelmente acidentadas, sobre rochas, que a natureza talhou em dias de mau humor, contrastavam com as areias movediças e fundas das planícies alentejanas, em que o andamento é feito de um misto de avanço e retrocesso. Ainda mesmo os que jornadearam em liteira ou na típica diligência não sabem avaliar o que uma jornada representava, na vida comum dessas épocas, tão afastadas dos modernos confortos. Se do incómodo da jornada ajuntarmos os seus perigos, havemos de concordar em que, para se tomar tal deliberação, o caso tinha de ser, sériamente, pensado. Para não falarmos dos desastres ou perigos chamados de viação, havia os perigos da fera selvagem e da fera humana: as serras, aonde os lobos tinham os seus fojos, e os pontos inquinados, como a Falperra e o pinhal da Azambuja, e, também, o pinhal do Estoril, já muito reduzido na sua extensão, e, hoje, aristocratizado.

Estes e outros locais, que a História registou e andam na tradição popular, eram sítios perigosos em que o triste transeunte deixava, muitas vezes, a bolsa ou a vida, quando não eram ambas. As estradas, tirante aqueles sulcos, muito trilhados pelo rodar de muitos séculos, entre as cidades e as terras principais, eram coisas que não existiam. No Sul, aonde predominavam a planície e a charneca, as estradas eram veredas só conhecidas dos pastores e dos almocreves, cujo mester os obrigava a tomar pontos de referência, para se não desviarem da linha a percorrer. Marcos indicadores não existiam, e as distâncias marcavam-se por horas de andamento. Léguas, havia as da velha.

Em alguns itinerários da capital para o sul do país, para o centro, barlavento ou sotavento do Algarve, Alvalade está indicada como estação e ponto de passagem. E isso, claramente devido à sua localização. A actual orografia do terreno é, aproximadamente, a que nos deixou o terceiro lacustre, no Mioceno. Situada no Vale do Sado, no ponto de confluência de Campilhas, Alvalade era uma espécie de entroncamento de linhas, para onde convergiam e de onde ramificavam as diversas vias de comunicação, deste lado do país. É, unicamente, a esta posição topográfica que Alvalade deve a sua estação ferroviária, e pena foi que circunstancias económicas fixassem, em outro local, o centro, que a natureza aqui estabelecera.

O problema da viação – o antigo e moderno – teve, sempre, em Alvalade, uma grande acuidade. No inverno, a barricada das ribeiras estorvando a passagem, o continuo fosso das areias, que serve de peia, de travão a todo e qualquer movimento. É pena que o turismo, que anda, sempre, à cata de raridades, não tenha querido apontar, para aqui, uma minúscula estrada, que lhe revelaria uma miniatura do Sahara, e até os perigos dos precípicios, porque não é pequeno aquele sorvedouro de areia, aonde não há salvação para o que lá cai. Pois há, aqui, dessas belezas. Temos, é certo, a viação acelerada, mas essa é só para os Cresus, e não serve para estas coisas corriqueiras da vida, e a vida, por aqui, é toda corriqueira: cava-se, semeia-se, monda-se, ceifa-se, debulha-se, manda-se para fora, e tudo isto a pulso, às costas, por não haver outro meio de o fazer. Falta-nos a tal estradinha que, se aparecesse, tornaria o pão livre… O que nos tem valido é que aqueles filantropos americanos e ingleses, que denunciaram, ao mundo culto, o cacau escravo de S. Tomé, não descobriram, ainda, o trigo escravo de Alvalade… Mas, não cantemos, que isto de cantar, tem seus perigos.

Eram três as entradas da vila, Quem vinha do Levante procurava o Bairro da Fonte; os do Norte e Poente, a Rua de Lisboa; e os do Sul, a Rua de S. Pedro. Passageiro que viesse da capital para o centro do Algarve, entrava pela Rua de Lisboa, hospedava-se no Travassos e, se não tivesse condução, o Guisado encarregava-se de lha alugar, fornecendo-lhe guia, saindo pela Rua de S. Pedro. Era, portanto esta rua uma das mais concorridas. Quem, hoje, a vê dificilmente a recompõe como era no século XVI. Tinha, então como hoje, a orientação Norte/Sul. Começava do Norte, junto aos Paços do Concelho, e terminava do lado Poente, junto à Travessa do Lagar, e de leste, junto à embocadura da actual Rua Luis de Camões. O terreno ao Sul até ao curral do concelho, era denominado o Rossio. Daqui nascia a carreteira da Fonte do Pote, que seguia para Colos, Odemira e S. Martinho das Amoreiras. Ao longo desta carreteira, numa extensão de cerca de 600 metros, era o “chão das vinhas”, porque dum lado e doutro havia “vinhas e hortejos, com suas árvores mansas”. A esquina  da Travessa do Lagar, com a Rua de S. Pedro, era formada por umas casas aonde residiu e, em 1754, faleceu o Prior desta freguesia, Padre António Mendes Tavares, que as deixou, encapeladas, aos seus sucessores, sendo o último pároco que as habitou, em 1850, o Padre Bernardo António de Sousa. Daqui resultou chamar-se àquele local “O Priorado”.

Uma casa de primeiro andar (a Casa dos Juízes), que faz esquina com a Travessa da Igreja, com a Rua do Adro e a Rua de S. Pedro, pertenceu ao morgado José Joaquim Moreira, sargento-mor desta Vila, que a habitava. O Capitão Doutor Domingos Correia Estasso, dono do Roxo, possuía nesta rua e contíguas ao Priorado, umas casas e um celeiro. Desempenhou aqui vários cargos públicos e residia aqui, parte do ano. O Capitão Domingo Ribeiro de Lima possuiu, no “chão das vinhas”, um cerrado e era, também, o dono da “Horta do Pego Verde”. Viveu aqui, e foram duas herdeiras, suas filhas, que professaram no Convento do Salvador, em Évora. Uma delas – Soror Joana de Santa Teresa – foi abadessa do referido convento. O documento, que, em seguida, trasladamos, vai dizer-nos o motivo porque esta rua é chamada “Rua de S. Pedro”: “Pessue hum serradinho junto à Rua de S. Pedro, d’esta villa aonde está ao presente a sua hermida (…) de que fiz este termo, para d’ele a todo o tempo constar. Alvalade, de Novembro vinte e oito, de mil sete centos sessenta e três annos. O Prior Martiniano Gomes Pereira” (do Tombo da Moraneia de S. Pedro, fols.I). A ermida caiu nos fins do século XVIII, e o cerradinho foi aproveitado para ali se construir, em 1854, o actual cemitério público; custou a obra cerca de 180 mil réis, e foi canonicamente, benzido pelo pároco Bernardo António de Sousa. A primitiva ermida do Príncipe dos apóstolos, segundo se infere do referido Tombo, estava situada numa courela entre o Pasmo e a Defesa, e os seus alicerces ainda se conheciam, nos fins do século XVII. Presentemente, desembocam, nesta rua, as artérias seguintes: a Travessa do Lagar, Rua da Figueira, Rua do Adro, Travessa da Igreja, a Praça, a Rua Nova, Rua Luis de Camões, Rua Vasco da Gama, Rua Gonçalves Zarco e Rua Infante D. Henrique. Estas últimas quatro ruas, com a casaria adjacente que foram alinhadas em 1911, na direcção Este-Oeste, constituem o chamado “Bairro de S. Pedro”.

_Apontamentos históricos do Padre Jorge de Oliveira (1865/1957), pároco de Alvalade entre 1908 e 1936, para uma monografia que não chegou a publicar.

2 Respostas a Alvalade antiga

  1. José Raposo Nobre   17 de Janeiro de 2014 at 12:23

    Magnifica, como todas, as descrições do Padre Jorge de Oliveira, sobre esta vila antigamente. Na minha memória o que mais me impressionou desde os 5 anos, foram as cheias dos Rios Sado e Campilhas que em anos invernosos a vila estava isolada, para Leste, durante semanas, a passagem para as Courelas do Concelho tinham de ser feitas nos barcos do Ramusga. Quando veio o 1º Taxi estacionava na margem direita do Sado e os necessitados do seu uso recorriam ao barco. O pior era para os moradores de Coitos, Zambujeira, Porto Beja, Conqueiros ou Porto Ferreira que utilizavam as “pinguelas” (uma tábua sobre a corrente do Rio) que provocou algumas mortes aos mais afoitos que arriscavam a travessia. Havia um marco no ponto onde chagara a maior cheia do Sado, estava a cerca de 30 mtrs da passagem de nível. O terraço do prédio onde está o Algazarra era Miradouro principal. Recordações que registei sentado à porta o Posto da GNR, eu que vinha habituado a ver as ondas do Mar nas ameias do Castelo de Sines, onde nasci…
    JRN

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  2. Matilde Oliveira   17 de Janeiro de 2014 at 16:48

    Belíssimo texto para quem pretende conhecer melhor Alvalade Sado ao nível do seu passado!

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