Por alturas do grande sismo que hoje perfaz 262 anos, Alvalade era uma pequena vila, de poucos arruamentos e que se resumiam ao largo do Adro (actual largo 25 de Abril), rua do Adro (actual rua 25 de Abril), rua da Figueira, travessa da Figueira, rua de S. Pedro, Priorado, travessa do Adro (actual rua Padre Abel Varzim), rua de Lisboa, travessa do Espírito Santo, praça D. Manuel I, travessa da Misericórdia (actual travessa da Cruz), rua Nova (actual rua Dr. António Guerreiro Fernandes), rua da Estalagem (actual rua 31 de Maio de 1834), rua Direita (actual rua da Cruz ), travessa de S. Sebastião (actual rua Almirante Reis), e largo da Feira (actual praça da República). O bairro de Campilhas, para onde a vila se estendeu com o passar dos tempos, já albergava também alguns moradores. Embora sede de concelho e de origens muito remotas, os edifícios mais importantes e notáveis da vila eram a igreja matriz e a igreja da Misericórdia. No geral, a vila era habitada por gente de parcos recursos que ocupavam casas térreas muito modestas, em taipa. Imóveis de sobrado não chegariam a uma dezena. Na cintura da povoação, destacavam-se as pequenas ermidas de S. Sebastião e de S. Pedro, rodeadas por dois importantes olivais, seculares, que as separavam da vila e que o crescimento urbano de Alvalade se encarregou de fazer desaparecer.
Em 1755, a praça D. Manuel I já teria uma configuração muito próxima da actual, com excepção do alçado onde, em 1964, foi construída a sede da Casa do Povo, após a demolição de um pequeno conjunto de moradas (na fotografia, de meados do século passado) e da casa de sobrado dos Lança Parreira onde o deposto rei D. Miguel I ficaria alojado na noite do dia 31 de Maio de 1834. A casa da câmara ou paços do concelho, a igreja da Misericórdia, a modesta capela do Espírito Santo e o hospital-albergue do Santo Espírito, de fundação medieval, nesta altura já na tutela da Santa Casa da Misericórdia de Alvalade, transformaram a praça no centro cívico e administrativo da vila e do concelho. A Casa dos Juízes, já no início da rua de S. Pedro mas voltada para a praça, completava o conjunto dos edifícios mais importantes do coração da vila e onde se sentiam os vários poderes que pendiam sobre o velho concelho de Alvalade: o poder do rei, da Ordem Militar de Santiago, do Arcebispo de Évora e da Comarca do Campo de Ourique, a quem pertencia, do ponto de vista administrativo, o concelho alvaladense. O pelourinho manuelino, símbolo e instrumento da autonomia administrativa concedida pelo rei D. Manuel I em 1510, com a outorga do foral, ocupava o centro da praça. Para a administração e governo do concelho «(…) Alvalade tem uma companhia de ordenanças (militares), governa-se por dois juízes ordinários, três vereadores, um procurador do concelho, escrivão da câmara, juiz dos órfãos com um escrivão, dois tabeliães e um alcaide, cujos ofícios faz o ouvidor da comarca de três em três anos e em cada ano sai seu pelouro fechado e nele a justiça nossa para governo da Vila e seu termo», informações coligidas pelo Padre Luis Cardoso, em 1747, para o 1º volume do seu famoso Dicionário Geográfico de Portugal. O pároco de Alvalade era nomeado pelo rei, através da Mesa da Consciência e Ordens.
Os efeitos do terramoto
O casario da vila, que na altura se resumia ao actual centro histórico, foi muito fustigado pelo terramoto com derrocadas em várias habitações particulares, na maioria construídas em taipa e com um só piso. Na praça D. Manuel I, a casa da câmara ficou parcialmente danificada e o pelourinho manuelino também não resistiu e caiu por terra, tendo perdido nessa altura os principais elementos decorativos que caracterizavam o capitel e a base. Seria reabilitado e levantado algum tempo depois, e colocado sobre um plinto de alvenaria na esquina dos antigos paços do concelho de Alvalade onde se manteve até à década de sessenta do século passado. Em pior estado e com prejuízos mais significativos ficariam as igrejas e ermidas da vila. No dia 27 de Novembro de 1755, ou seja menos de um mês após o sismo, Luís Gomes Genões, visitador ordinário em representação do Arcebispo de Évora, D. Frei Miguel de Távora, inspeccionou a igreja da Misericórdia, a capela do Espírito Santo e a igreja matriz. No seu relatório sobre a igreja da Misericórdia e a capela do Espírito Santo refere: «Vi a igreja da Misericórdia incapaz de se celebrarem nela os ofícios divinos, ameaçando uma grande e considerável ruína, pelo que mando aos administradores da mesma, que dentro de oito meses reparem a mesma igreja, e não menos a do Divino Espírito Santo, que tendo esta menos ruína, com menos custo pode ser reparado em menos tempo.»
O visitador mostrou-se também muito preocupado com os estragos de grande vulto que observou na igreja matriz: «Achei esta igreja muito arruinada, assim na sua capela-mor, como em todo o corpo da mesma, prometendo perigos e ameaçando indecências pelo que recomendo ao Rev. Prior que faça representação a S. Majestade para que como grão-mestre das Ordens, mande prover de remédio, como se necessita e lhe não ponho pena por conhecer no mesmo Rev. Prior um incansável cuidado em ver a sua igreja restaurada do prejuízo que Deus Nosso Senhor foi servido dar-lhe.»
Igualmente grave foi o estado em que ficou a ermida de S. Sebastião, no termo da vila que, segundo o pároco de Alvalade à época, terá sido «(…) totalmente arruinada no dia do terramoto.»
As obras na igreja da Misericórdia e na capela do Espírito Santo correram por conta e expensas da Santa Casa, encabeçada na altura pelo provedor António Pereira Correia, que corrigiu, na medida do possível, os principais problemas estruturais e funcionais dos dois templos. Ao contrário da igreja matriz que, em 10 de Maio de 1757, mantinha ainda a maior parte dos estragos que o terramoto lhe infligiu, identificados nessa data durante a inspecção do visitador da Ordem de Santiago, Gervásio Almeida Cogominho, freire conventual de Palmela e Prior de Ferreira do Alentejo. Após visitar a principal igreja de Alvalade, acompanhado pelo pároco local, António Almada Pereira, o visitador relatou que: «(…) tomando contas do cofre da fabrica grossa, achou que tinha líquido, setecentos e dezasseis mil setecentos e dezoito réis, e como a dita quantia há-de superabundar do gasto do ornamento e a igreja no terramoto de 1 de Novembro de 1755, experimentou ruína nos telhados e paredes e precisa de reparos pela ruína que ameaça. O Rev. Prior dará conta, com o capítulo desta visita, para que S. Majestade se sirva mandar que das sobras dos ornamentos se façam os reparos necessários, concorrendo para o que faltar o Exmo. Comendador desta Comenda.»
Não se conseguiu apurar se o Duque de Lafões, na altura Comendador de Alvalade, comparticipou as obras, como ficou determinado, mas o rei, através da Mesa da Consciência e Ordens, respondeu favoravelmente ao pedido de ajuda da paróquia alvaladense, como refere o Padre António Almada Pereira em resposta ao inquérito nacional de 1758, mais tarde aproveitado pelo Padre Luis Cardoso para o 3º volume do seu Dicionário Geográfico: «(…) só a Igreja Matris reparada a requerimento do pároco na Meza da Consciência, aonde pertence (…)»
Em 1759, o Visitador Ordinário Dr. Pascoal Rodrigues da Costa, em representação do Arcebispo de Évora, já encontra a matriz reparada e sem problemas por resolver, referindo que: «Achei esta igreja reparada da ruína do terramoto e suficientemente paramentada.», tendo as obras decorrido, muito provavelmente, entre meados de 1757 e finais de 1758.
Porém, o Padre Jorge de Oliveira, pouco tempo depois de ter assumido a paróquia de Alvalade, em 1908, identificou vários defeitos nas obras realizadas na igreja matriz, registando, nos seus apontamentos históricos sobre Alvalade, que «a reparação foi extremamente sumária e tosca, visto que a ela não presidiu nem a arte nem tampouco as regras rudimentares da segurança.» Aponta vários erros nas obras, nomeadamente na capela-mor e no pavimento. Por exemplo, as cinco lápides sepulcrais que estariam na nave da igreja, foram usadas e aproveitadas para reconstruir o piso da capela-mor: «umas direitas, outras invertidas, toscamente assentes, ao ponto de terem sido picadas nas inscrições, nos sítios mais desnivelados (…)» Na capela-mor «o terreno do lado direito cedeu um pouco e motivou o desnivelamento do pavimento da sacristia e desaprumou um pouco o arco cruzeiro do mesmo lado. A reparação foi feita da seguinte forma: na prumada do arco levantaram um pano de parede, de cada lado, encostado às colunas com 1.50 m de largura, até encontrar as voltas do arco. Resultou deste trabalho que o arco desapareceu com tal irreverência, e a capela-mor ficou com grande falta de luz, que só recebia do inestético portão com que ficou. Um artezão caiu não foi substituído, e as lápides sepulcrais existentes na igreja foram deslocadas para pavimentar a capela-mor, como já se disse. A abóbada da sacristia fendeu em todo o seu comprimento, e o pavimento não foi reparado. A empena formada sobre o arco cruzeiro também se desnivelou mas, apenas foi rebocada nas fendas abertas e ainda conserva o aspecto com que ficou. As paredes do corpo da igreja e a cimalha fenderam e em parte caíram. Foram substituídas por paredes de taipa. O frontispício da igreja abriu larga brecha, junto à torre, cuja escada se desaprumou. A torre e a frontaria da igreja ainda conservam bem patentes as injúrias sofridas e não reparadas. Os coruchéus que existiam sobre os gigantes laterais caíram, e não foram reparados. A igreja não tinha beirais e a água dos telhados despejava em algeroz e estes em canos de escoamento. Para reforçar os alicerces, que em parte eram de arcaria, puxaram do adro grande quantidade de terra que acumularam junto às paredes, tornando, assim, a igreja muito húmida. As soleiras das portas laterais subiram e formaram, interiormente, degraus para se descer até ao pavimento. Tudo isto foi feito, toscamente, e sem arte…», concluía o sacerdote alvaladense.
Nos anos que se seguiram e durante o tempo em que a paróquia lhe esteve confiada, o Padre Jorge tentou, com os poucos meios da paróquia, corrigir os principais erros que identificou: «Em 1910 fiz-me acompanhar de um pedreiro hábil, inteiramente obediente às minhas ordens, e meti ombros à reposição do arco cruzeiro, à sua forma primitiva dentro das minhas possibilidades, pois que a Junta da Paróquia não tinha recursos e dos proprietários nada podia esperar, pois que todos estavam ausentes. O Altar das Almas, próximo do cruzeiro, do lado direito, estava podre; a mesa era em taipa salitrosa, que se esboroava. Só se aproveitava o painel de pintura tosca, que valia menos que a moldura. Aproveitei o quadro que mandei colocar na parede lateral da igreja, do lado direito. Limpou-se o vão e fizeram-se as reparações precisas, colocando-se nele o altar completo de Nossa Senhora da Conceição, depois de se verificar que ajustava perfeitamente. Procedeu-se a minuciosa inspecção ao altar de S. Marcos, ao fundo da igreja, do lado esquerdo, verificando-se que a mesa, igualmente de terra, já apodrecida com a humidade, e que todos os inestéticos ornatos estavam cheios de caruncho e desconjuntados. Apeou-se tudo, reparou-se o vão e nele foi colocado o altar de Nossa Senhora do Rosário. Foi então que se observou em toda a sua nudez, o vandalismo feito. O capitel direito fora partido ao meio pelo terramoto e o esquerdo foi partido a picão, como observei nas mossas nele deixadas, para documentação futura. Pedi madeira emprestada e armou-se o andaime até ao fecho do arco que estava, todo ele, cheio de argamassa de cal. Tacteou-se tudo com pancadas de martelo para se ver aonde o arco estava desapertado. Com excessos de cuidado foi-se picando a caliça ali posta, pondo-se pouco a pouco a nu o arco primitivo, apertando-se tudo com lascas ou cunhas de pedra e de azinho. Desobstruído e limpo o arco até aos capitéis, foi rebocado e posto como era primitivamente. Chegado aos capitéis, foi preciso adivinhar nuns pequenos restos deixados, o desenho primitivo. Encheu-se com alvenaria todo o vão partido e eu próprio, com formão, goiva e martelo, gravei fundo, aproximadamente, o que lá devera ter estado. Terminado esse trabalho que me levou alguns dias, apesar de me não desviar dali um momento, repararam-se os fustes e os colunelos. As bases estavam intactas, apesar de completamente obstruídas com argamassa. Os fustes das colunas eram torsos, como se verificou dos fragmentos encontrados, e os colunelos eram direitos. Concluído esse trabalho e retirado o andaime, mandei abrir a porta principal e senti, ao ver o trabalho feito, uma grande sensação de alívio.»
Um trabalho de fôlego que reconhece mais tarde ter ficado por concluir e que, aparentemente, não foi prosseguido pelos seus sucessores.
Na freguesia do Roxo, onde o Padre Francisco Guerreiro Metelo oficiou entre 1724 e 1762, os estragos provocados pelo sismo na igreja de Santa Maria foram pouco significativos e rapidamente corrigidos. Sobre o terramoto, o sacerdote refere que «(…) he a igreja pequena assim ficou pouco arruinada do terramoto, de q. ja esta reparada.»
_Luis Pedro Ramos
1 de Novembro de 2017
Muito interessante, gostei muito de conhecer estas informações sobre a minha terra. Obrigada pelo tempo que gastou nesta pesquisa e pela partilha. Agora que já o conheço um beijinho.