Os registos das visitações efectuadas pelas Ordens Militares constituem fonte de grande interesse para a História. Para além das visitas paroquiais, normalmente a cargo do bispo ou de um seu emissário, também as Ordens Militares tinham o direito de visita e inspecção nas localidades, comendas, ou territórios da sua jurisdição. Desse contacto directo com os lugares e as populações radicadas nas diversas comendas, ficaram notícias e informações sobre a vida das comunidades, dos seus costumes e tradições, das paróquias, da cultura, da arquitectura, dos acervos dos templos, da toponímia, da assistência religiosa e do direito canónico. Através das visitações as Ordens Militares pretendiam conhecer o seu património e a vida dos seus representantes no seio das comunidades locais. No que concerne aos bens era seu dever fazer o respectivo levantamento e inventário, verificar o seu estado de conservação, e se fosse necessário mandá-los reparar dentro de um determinado prazo, e de acordo com a renda que o seu detentor tivesse. Relativamente às pessoas, sacerdotes e demais representantes das Ordens, o objectivo dos visitadores era saber como viviam e se o faziam de acordo com o espírito da Ordem e da sua Regra, e como administravam os bens que lhe estavam confiados. A visitação que aqui se analisa parcialmente, cujo texto original está depositado na Torre do Tombo, decorreu entre os dias 22 e 27 de Novembro de 1510 (dois meses depois de Alvalade ter recebido o foral manuelino), e é da responsabilidade da Ordem de Santiago da Espada, que detinha a comenda de Alvalade. Foi dirigida pessoalmente por D. Jorge de Lencastre (1), Mestre da Ordem, que se fez acompanhar por D. João de Braga, Prior-mor e segunda dignidade da hierarquia dos espatários, e por Francisco Barradas, seu chanceler. O escrivão escolhido foi Pero Coelho. Nesse ano, residiam na comenda de Alvalade 130 vizinhos (cerca de 585 habitantes). O comendador era D. João de Sousa, radicado em Ferreira do Alentejo, igualmente cabeça de comenda que também detinha. A visitação iniciou-se na Igreja de Santa Maria (actual igreja matriz), onde oficiava Estevão da Frota, clérigo da Ordem de Santiago, com obrigações de missa aos Domingos e festas, cura das almas e de tesoureiro da igreja, que habitava umas casas confinantes com o adro. Na primeira observação os visitadores constataram que a igreja não possuía sacrário, facto gravoso que iria merecer especial atenção nas determinações lavradas no final da vistoria.
A igreja, de nave única, apresentava a capela-mor abobadada, com nervuras de cantaria e três chaves, onde se destacava o arco-cruzeiro (de tijolo e cal) com “(…) dous capiteis de pedra muito lavrados e boõs “. O altar-mor (feito em pedra e cal) elevava-se sobre três degraus e exibia um grupo escultórico constituído por uma imagem de Nª Senhora com o Menino Jesus ao colo, dentro de um pequeno retábulo ”(…) com portas tudo velho“. A Nª Senhora tinha vestimenta de linho e uma beatilha de rás, e o Menino outra vestidura. A ladear o altar-mor e junto ao arco-cruzeiro existiam dois pequenos altares secundários, em alvenaria, respectivamente da parte da Epístola e da parte do Evangelho “(…) nos quaes estam duas imagees de pao muito velhas “. No altar do lado da Epístola destacavam-se algumas pinturas murais, concretamente três imagens: uma Santa Catarina, um São Francisco e um Santo António. Ainda à direita, uma porta com boa fechadura dava acesso à sacristia, também abobadada. O altar-mor e os altares laterais eram resguardados e defendidos por um gradeamento de madeira colocado no arco-cruzeiro “(…) no dicto arco estão huuas grades de paao novas que cerquam os dous altares que estam no corpo da igreja as quaes sam bem fechadas com o seu ferrolho e fechadura e chave“. O concelho (ou seja a câmara) tinha dotado a igreja de uma pia baptismal, e no exterior, adossado à frontaria, levantou um campanário com dois sinos, elementos que os visitadores também registaram.
O templo, enquanto edifício, não apresentava problemas merecedores de reparo: o telhado estava bem conservado e tinha um bom forro em madeira de castanho e pinho; possuía boas paredes de taipa, bem rebocadas, sobre fundações de pedra, cais, e formigão de tijolo; as portas e fechaduras eram novas.
Como era também seu dever a comissão inspectora mediu o adro e as várias secções e volumes da igreja, que constataram ter as seguintes dimensões:
– Capela-mor: sete varas e terça de comprido (à volta de 8 m), por cinco varas de largura (5,50 m);
– Sacristia: três varas de comprimento (3,30 m), por duas varas e meia de largo (2,65 m);
– Nave: catorze varas e duas terças de comprido (16 m) por seis varas e meia de largo (7 m);
– Adro: do portal até ao limite poente tinha vinte e cinco varas e duas terças (28,20 m); da porta lateral ao limite sul (que confinava com a residência do prior) mediu dezanove varas (20,90 m); da traseira da capela-mor até ao limite oriental seis varas e meia (7,15 m); a área total do adro era de cento e oitenta e seis varas ou seja 204,60 m.
Os paramentos, ornamentos, livros e outros objectos de culto existentes na igreja, foram também minuciosamente avaliados e inventariados.
No grupo das alfaias de prata anotaram a existência das seguintes peças:
– Uma cruz de prata branca que tinha um crucifixo dourado e capiteis que com o seu pé pesou quatro marcos e duas onças (965,46 gr);
– Um cálice e patena de prata parcialmente dourado, que pesou um marco e sete onças e meia (444,695 gr);
– Um cálice e patena de prata, dourado, com o pé quebrado, que pesou um marco e seis onças (401,66 gr);
– Um cálice de prata branca, que pesou dois marcos menos meia oitava (444,69 gr);
– Uma custódia de prata branca com quatro coruchéus, cadeias de prata e fechos ”(…) a quall deu elrey Dom Manuel, meu senhor, per a prata que foi tomada à igreja” que pesou três marcos (688,56 gr).
A análise que os visitadores fizeram aos paramentos revelou uma situação decepcionante. Grande parte das peças estava em muito mau estado, e algumas totalmente inutilizadas:
– Uma vestimenta de cetim verde com savastro de cetim preto, aveludado, muito velha e rota;
– Uma vestimenta de zarzagania, comprida, muito rota sem condições para ser usada;
– Duas alvas sem ornamentos, velhas e rotas;
– Uma alva muito velha e rota;
– Uma capa de zarzagania, velha.
– Uns regaços de alva de Damasco, velhos.
Neste quadro de penúria, salvavam-se, quase por milagre, uma capa de Damasco verde e veludo roxo, já usada, e uma vestimenta de Damasco alionado, de bordado raso, ambas oferecidas pelo Comendador.
No tocante aos ornamentos, a situação era igualmente preocupante:
– Um frontal de Arrás, usado, que servia no altar-mor, oferecido pelo Comendador.
– Dois frontais de sarja verde e vermelha, muito velhos e rotos que serviam nos outros dois altares;
– Quatro mantéis de linho, três usados e um velho e roto.
– Um pedaço de almeizar, velho e roto.
A excepção deste cenário inexplicável, eram três toalhas lavradas de ponto real que serviam nos altares, e quatro mesas de toalhas de Flandres.
Encontrou-se ainda uma arca onde os paramentos e ornamentos eram guardados, que os visitadores entenderam ser insuficiente.
No que concerne aos livros litúrgicos foram também identificadas várias deficiências. Dos nove códices existentes, cinco estavam desencadernados. Surpreendentemente a igreja não tinha um livro com os rituais da administração dos sacramentos ”(…) Achamos que a dicta igreja carecia de livro que tevese o oficio de bautizar e da encomendacam dos finados o que he cousa mui necessaria …”.
Regista-se o facto positivo de a igreja já possuir, na época, dois livros impressos (dois missais). No seu conjunto foram encontrados os seguintes livros litúrgicos:
– Um missal de forma, grande e bom, do costume de Évora que deu João de Sousa, Comendador (livro impresso que continha textos litúrgicos e ofícios característicos da diocese de Évora);
– Um missal de forma, romano, velho roto e desencadernado (livro impresso com as missas segundo o rito romano);
– Um colectário pequeno escrito em pergaminho, já velho (era o livro do presidente do coro com as orações, ou colectas);
– Um domingal de lenda escrito em pergaminho, muito bom, desencadernado (este livro continha as missas dos domingos);
– Um santal de lenda e canto, escrito em pergaminho, muito bom, desencadernado (livro que continha as missas para as festas dos santos, e hinos);
– Um saltério, de pergaminho, velho e desencadernado (continha os salmos da Bíblia distribuídos pelos dias da semana);
– Um epistoleiro, de pergaminho, com algumas missas apontadas em cinco cordas, muito bom, desencadernado (continha as epístolas e algumas missas cantadas numa pauta de cinco linhas);
– Um evangeliário, de pergaminho, usado, e bem encadernado (livro que continha passagens dos evengelhos que se liam ou cantavam na missa);
– Um oraçoeiro, de pergaminho, com boa letra e bem encadernado (continha hinos musicados).
No grupo das alfaias de latão, arame e estanho do acervo da igreja, foram registadas também várias peças:
– Um turíbulo de latão, pequeno e muito velho;
– Quatro castiçais de açofar, que serviam nos altares dos quais dois já eram muito velhos, mas o outro par, oferecido pelo comendador, foi considerado bom;
-Uma bacia para o ofertório que Isabel Vaz, moradora em Setúbal, teria oferecido à igreja;
-Uma caldeira de água benta velha e rota e dois hissopes de ferro: um novo e outro velho;
-Dois pares de galhetas de estanho: um par novo e outro velho;
– Uma campainha pequena de mão, que usavam no acto da dupla elevação e nas procissões;
– Uma custódia de latão;
– Uma cruz de madeira, pintada, com um crucifixo;
– Uma buceta de hóstias nova e pintada, muito boa;
– Umas obradeiras pequenas, que estavam velhas e já não faziam hóstias;
– Uma caixa pintada e muito boa onde se guardavam os corporais.
No dia seguinte (23 de Novembro) os ilustres visitadores continuaram a vistoria e o seu inventário inspeccionando a ermida de S. Pedro, que na época se situava onde está hoje o cemitério público. Depararam-se com um pequeno templo, muito degradado, de taipa, com uma só divisão (com 6,60 m de comprimento por 3,85 m de largura), sem portal nem porta na sua única entrada, sem ousia, sem altar, com uma cobertura de telha vã, e circundado por um valado. Apresentava ainda um alpendre incompleto, em taipa, devidamente emadeirado, mas por telhar. No lugar do altar e os visitadores encontraram “(…) huma tavoa muito estreita e piquena sobre duas estacas omde estaa huua imagem de paao de São Pedro, muito piquena e velha e na dita tavoa estão tres pedacos de manteis muito velhos ”. Nada mais existia no interior da ermida.
Deficientemente conservada e sem estar provida do essencial não foi, decerto difícil, verificar que a pequena ermida não tinha “(…) obrigação de nenhuuma missa ”.
Por fim os visitadores quiseram saber a origem do templo e/ou quem o teria edificado, factos desconhecidos para os oficiais do concelho e da comenda que acompanhavam a visita, que apenas souberam informar que a câmara já o teria restaurado algumas vezes, assim como Lopo Afonso (provavelmente um morador devoto de S. Pedro). Seguiu-se, no mesmo dia, a visita à igreja de Santa Maria do Roxo. O templo, de uma só nave, exibia uma imagem de Nossa Senhora “(…) com seu tabernacollo por detras” no altar-mor. Na capela-mor destacava-se a abóbada de várias nervuras de tijolo e capitéis de cantaria, encerradas numa chave com as insígnias espatárias. O arco-cruzeiro, também em tijolo, era recente. Verificaram que a igreja estava bem telhada e emadeirada, e o piso ladrilhado em tijolo. Na nave do templo, a ladeá-la, registaram dois altares secundários: um invocando Santa Ana, e outro dedicado a S. Pedro. Sobre o arco-cruzeiro existia um campanário com um pequeno sino “(…) com que tamjem a Deus”. Na frontaria um portal de cantaria e uma galilé de quatro arcos foram os principais elementos registados: “(…) e o portall da porta primcipall he feito de pedraria (…); Diamte da porta primcipall estaa huu alpemdre muito bom de quatro arcos bem obrado e bem madeirado de madeira de castanho e cuberto de telha vãa“. Ao redor um amplo adro circundava o edifício.
A igreja possuía apenas um livro litúrgico, concretamente um missal manual (códice com as orações e rito das missas) escrito em pergaminho, à mão, que os visitadores classificaram de “muito bom”, e não tinha um único paramento.
Na medição dos volumes e adro da igreja verificaram as seguintes dimensões:
– Capela-mor: quatro varas de comprido (4,40 m) por três varas e terça de largo (3,67 m);
– Nave: sete varas e cinco sesmas de comprido (8 m aprox.) por cinco varas e meia de largura (6,05 m);
– Galilé: cinco varas e terça de comprido (5,85 m) por três varas de largo (3,30 m);
– Adro: da frente da galilé até ao limite poente mediu vinte e uma varas (23 m); vinte varas (22 m) da igreja ao limite sul; da igreja ao limite norte medira trinta varas (33 m); a área total do adro era de cento e setenta varas, ou seja 187 m.
No registo dos objectos de prata e ornamentos foram inventariadas as seguintes alfaias:
– Um cálice de prata branca, “(…) que pesara huu marco pouco mais ou menos “(cerca de 229,52 gr);
– Uma cruz de estanho, dourada, com um crucifixo;
– Um frontal velho;
– Um frontal, pintado, com um crucifixo;
– Um frontal velho, de linho, pintado, que estava no altar;
– Quatro lençois de linho;
– Nove mantéis, que serviam nos altares;
– Quatro toalhas de mãos: duas lavradas e duas brancas.
A Mem Daver, João Afonso Centeio homees amtigos, e a João Fortes e João Afonso (representantes locais da Ordem e do concelho), foi perguntado se sabiam quem tinha edificado a igreja, respondendo estes “(…) que os primeiros povoadores das irmidas e que ho concelho tem ha aministraçam della e a corregeo já per certas vezes e o concelho como padroeiro he obrigado de a correger e repairar quamdo lhe necessario for”.
Do Roxo os visitadores seguiram para a ermida de S. Roque (de que ainda subsistem vários vestígios), situada na herdade do Faial. O Mestre de Santiago e a sua equipa confrontaram-se com outra exígua ermida rural, de uma só divisão (medindo 4,95 m de comprimento por 4 m de largura), de paredes de taipa, com um pequeno altar igualmente de taipa “(…) no quall estaa huua imagem de São Roque e detras della um retabulo piqueno com suas portas velho”.
Dois velhos mantéis no altar eram os únicos ornamentos da ermida, que Mem Daver informou ter sido o seu mecenas construtor e velador: “(…) pareceo peramte nos Mem Daver e comfesou que elle fizera e edificara a dita irmida per sua devação em sua terra, pollo quall he obrigado da correger e repairar todallas vezes que ho ouuer mester”.
A equipa visitadora chefiada por D. Jorge concluiu a vistoria à comenda no dia 25 inspeccionando a ermida de S. Sebastião, no termo da vila (na zona do actual depósito de abastecimento de água). Verificou-se que o pequeno templo tinha uma só câmara (com 6,05 m de comprido por 4,40 m de largura), feita em taipa, e que estava fortemente degradado e desprezado “a quall he hua casa muito velha”. A única entrada era antecedida por uma galilé (que media 4,40 m de comprido por 1,85 m de largo). No interior um altar improvisado, também em taipa, exibia apenas “(…) huua imagem pimtada em huua tavoa”.
O acervo decorativo da igrejinha resumia-se a duas toalhas e cinco mantéis, sendo que destes apenas um estava no edifício, concretamente no altar, uma vez que os outros tinham sido levados para a vila. Não se encontraram quaisquer outras alfaias e não se conseguiu apurar a origem ou a data de construção da pequena ermida. Apenas que era muito antiga, e que o concelho estava obrigado a conservá-la sempre que fosse necessário, o que, segundo se soube, já tinha sido feito algumas vezes.
Em resultado das diversas anomalias identificadas ao longo da visitação da comenda espatária alvaladense, D. Jorge de Lencastre e a sua equipa prescreveram várias determinações, a cargo e expensas do Comendador D. João de Sousa, das quais destacamos as seguintes correcções a providenciar na então igreja de Santa Maria (actual igreja matriz):
– Mandam fazer um sacrário no prazo de um ano, que não existia na Matriz. Uma lacuna grave segundo os visitadores: “(…) Achamos que na dita igreja nam ha sacrario, e he muito perigosa cousa per os enfermos nam o aver, hii portamto mandamos e encomendamos ao dito comendador que mande fazer o dito sacraario a maão ezquerda do altar moor, como tem em Ferreira…”.
Para além da comenda de Alvalade, João de Sousa detinha também a comenda de Ferreira (do Alentejo), e a comissão visitadora quis, provavelmente, com a referência ao sacrário da Matriz de Ferreira, deixar bem explicito ao Comendador que não só estava também obrigado a dotar a Matriz alvaladense de um sacrário, bem como do modelo que devia ser adoptado e o local exacto no altar-mor onde ele deveria ser introduzido.
– Mandam comprar e colocar na igreja umas obradeiras novas no prazo de seis meses “(…) de marca acustumada e nam tam pequena como estas tem”, uma vez que as existentes, para além de não agradarem aos visitadores quanto ao modelo e tamanho, eram velhas e já não fabricavam hóstias.
– Mandam comprar uma caixa e âmbulas novas para os três Santos Óleos, também no prazo de seis meses.
– Mandam fazer e colocar armários na sacristia para acondicionar e guardar os ornamentos e paramentos, e dessa forma evitar a sua degradação.
A igreja possuía apenas uma arca, e na sacristia não existia um só armário ou móvel onde se pudessem resguardar, em condições aceitáveis, os objectos e alfaias de pano da igreja, facto que os visitadores entenderam contribuir para o estado degradado em que se encontravam grande parte dos paramentos e ornamentos (“rotos e velhos”). Ficou assente que no prazo máximo de um ano, o Comendador teria de providenciar, para a sacristia, “(…) os ditos almareos com suas fechaduras pera se as ditas cousas todas guardarem como devem”.
– Mandam fazer três frontais de linho, pintados, a cumprir no prazo de seis meses.
No altar-mor havia um velho frontal, oferecido pelo Comendador, e que ainda podia ser utilizado. Nos altares secundários, em dias de festa recorria-se ao empréstimo de peças do exterior, de uso corrente, para essa função, provavelmente idos de alguma casa mais abastada, uma situação que desagradou e indignou os visitadores: “(…) achamos que na dita igreja avia tres alltares, os quaes nam tinham fromtaes e se serviam de emprestado pollas feestas, o que parecia gramde mingoa e desonestidade cubrirem se os ditos altares com panos que tornavam aos umanos usos e portamto mandamos ao dito comemdador em virtude de obediemcia que mande fazer tres fromtaes de pano de linho pimtados pera os ditos altares o que cumprira demtro em seis meses”.
– Mandam fazer uma vestimenta de linho, para uso diário, e assim se pouparem os outros paramentos que ainda eram usados mas que estavam bastante danificados, prescrição que o Comendador deveria cumprir nos seis meses seguintes.
– Mandam comprar e provir urgentemente a igreja de um livro com os rituais dos sacramentos, que a igreja carecia, e cuja ordem deveria ser satisfeita no prazo de quatro meses “(…) vista a gramde necesidade que hii ha do decto livro”.
– Mandam encadernar imediatamente três códices litúrgicos: um domingal, um santal e um saltério, que estavam desencadernados.
– Mandam fazer um cruzeiro das Trevas novo, que o Comendador devia colocar na igreja até à Quaresma seguinte, porque o único existente estava quebrado.
– Mandam fazer uma cortina com o respectivo guarda-pó para o altar-mor, que acharam desguarnecido, no prazo de um ano.
Do relatório desta inspecção aqui analisado, que nos fornece informações e elementos de grande interesse sobre Alvalade poucos meses depois de ter recebido a carta de foral, destaca-se, pela negativa, o estado degradante em que se encontravam as ermidas rurais e do termo da vila, algumas das quais em pré-ruína.
A ermida de S. Pedro nem porta tinha “(…) soomente huua emtrada que lhe deixarão quamdofizeram as taipas “. Com excepção da ermida do Roxo todas as outras pouco mais possuíam do que o santo a que estavam consagradas.
Em Santa Maria do Roxo havia um livro litúrgico (um missal), um cálice e outras alfaias de apoio às celebrações, mas, surpreendentemente, a igreja não tinha nenhum paramento.
A igreja de Santa Maria (actual Matriz de Alvalade), o templo principal do conjunto visitado, estava bem corregida, mas a dignidade dos actos de culto não estava assegurada: não tinha sacrário; os paramentos e ornamentos eram deficitários e encontravam-se em mau estado; a maior parte dos livros litúrgicos estavam desencadernados, o que dificultaria certamente a sua utilização. Para esta precaridade, também não serão alheias as dificuldades económicas sentidas na época pelos párocos já que os paramentos, as alfaias decorativas e os livros litúrgicos constituíam um pesado encargo para as paróquias. Por outro lado nem sempre os comendadores cumpriam atempadamente com as suas obrigações, algumas das quais pesavam fortemente nos seus orçamentos. Mesmo com esses condicionalismos, e ainda relativamente à Matriz, não se entende a inexistência de um livro com o ritual dos sacramentos (sem esses Ofícios como é que celebrariam os baptismos e rezavam na encomendação dos defuntos?), ou ainda o facto de as únicas obradeiras existentes já não funcionarem (se não podiam fabricar as próprias hóstias para o culto quotidiano, como fariam para as obter?).
Relativamente à existência de vários códices desencadernados, a questão parece não surpreender o Mestre D. Jorge na medida em que se fez acompanhar de um encadernador, certamente por já conhecer o estado em que se encontravam grande parte dos livros litúrgicos não só na comenda alvaladense, como na maior parte dos templos da Ordem Santiaguista, e daí lavrar a seguinte prescrição no fim da visitação: ”(…) mandamos que estes livros sejam logo emcadernados aa custa do comemdador pello emcadernador que comnosco trazemos “.
Ainda na igreja de Santa Maria, no seu acervo, destacam-se também, alguns elementos de grande interesse que o relatório desta visitação nos fornece, como as pinturas murais que estariam no altar secundário do lado da Epístola, que actualmente já não são visíveis no templo. De resto, estas não seriam as únicas pinturas murais existentes na actual igreja matriz alvaladense, uma vez que D. Jorge, através de um provimento datado de 4 de Novembro de 1524, ordena que no baptistério se pinte “(…) na parede o bautismo de Nosso Senhor asy como o vira pintado em semelhantes capelas com Sam Joham e o Espiritu Samto segundo se pinta nas outras igrejas o decto bautismo“, ordem que foi cumprida, confirmada pela visitação de 1533, ao que se acrescentou outra pintura, em data indeterminada, concretamente uma imagem de S. Sebastião, na parede oriental do mesmo baptistério.
Também interessante é o facto de a igreja possuir uma custódia de prata, oferecida pelo rei D. Manuel I ”(…) por a prata que foi tomada a igreja“, em altura e por motivos que a visitação não esclarece.
As prescrições e ordens lavradas no final da vistoria de 1510 não irão corrigir a totalidade das carências detectadas. Contudo, verifica-se que a Ordem intensifica a sua fiscalização sobre a comenda de Alvalade a partir desta visitação até ao final do Mestrado de D. Jorge, quer sobre os aspectos relacionados com a vida litúrgica e assistência religiosa da paróquia, como da conservação dos templos e as respectivas alfaias. Prova disso são as sucessivas ordens e provisões espatárias lavradas nos anos e décadas seguintes.
Por exemplo, a 12 de Janeiro de 1516, provavelmente na sequência de uma queixa, ou relatório de um seu emissário sobre o comportamento de alguns moradores de Alvalade, a Ordem escreve ao prior da matriz: “(…) fazemos saber a vos prior da nossa villa de Alvalade que nos somos emformados que muitos homees e pesoas quando veem aa missa aos domingos e festas nam contentes de estarem no corpo da igreja se metem na capela (baptistério) das grades pera demtro e estam hi fazemdo muitas torvações com suas pallrras e praticas”, situação que parecia não incomodar o pároco, o que seria pouco abonatório para o seu zelo pastoral mas que a Ordem estava determinada a rectificar, a bem da dignidade e elevação com que deveriam ser celebrados os ofícios “(…) e queremdo nos evitar tais cousas que sam pouco do serviço de Deus vos mandamos que aas ditas missas nom comsintães estar nenhuua pesoa das ditas grades pera demtro fazemdo os semelhantes pallratorios e murmurações e queremdo la estar os amoestay que se sayam fora das grades a ouvir sua missa“.
A 4 de Novembro de 1524 um emissário da Ordem constata, entre outras deficiências, que a custódia da Matriz continuava com os vidros do hostiário quebrados e o pé descolado, apesar de tempos antes já ter sido pedido à câmara que providenciasse o restauro da alfaia. A Ordem volta a mandar reparar a custódia, e a relembrar a câmara das suas obrigações na conservação dos objectos de prata. Mas, a 3 de Dezembro de 1527, ou seja três anos depois, o assunto não tinha tido ainda qualquer desenvolvimento e a custódia oferecida pelo rei D. Manuel I continuava por reparar. Verificando que os prazos concedidos à câmara para o arranjo da peça tinham sido já ultrapassados, a Ordem manda que um seu emissário verifique se a alfaia está ou não consertada, e caso continue por cumprir, aplique à câmara a coima pré-determinada de 500 reais que deverão ser entregues à fábrica da igreja. Para que a alfaia não fique ainda por reparar, a Ordem prescreve que a custódia seja consertada em Setúbal, ordenando ao seu visitador que, no seu regresso a leve com ele “(…) porque qua se poderão as ditas cousas milhor fazer mandamos ao dito provedor que traga a dita custodia pera aqua coreger”. Para além do arranjo da peça a Ordem manda que se adquira também uma caixa de couro, à sua medida, para acondicionar a custódia. Tanto o restauro como a caixa correrão integralmente por conta da câmara “(…) os juizes e ofeciaes lhe darão pera isso o dinheiro que pouco mais ou menos podera custar“.
Na mesma carta de provimento, os espatários ordenam à câmara que num prazo de dois anos faça uma escada para o campanário da igreja matriz “(…) a quall farão omde ao dito prouedor e a eles parecer bem pera milhor serviço, asy cumprirão sob pena de dous mil reais pera o nosso qonvento de Santiago”. Contudo, passados os dois anos concedidos, o campanário continuava sem escada, situação que se manteve, pelo menos até 1533, altura em que a Ordem volta a insistir na mesma necessidade, ordenando novamente à câmara “(…) e asy mande fazer hua escada da bamda de fora com hu portall de servimtia de demtro da igreja asy como lhe demos menção de como avia de ser“.
A 12 de Agosto de 1525 a Ordem responde favoravelmente a um pedido da câmara de Alvalade, para que esta crie e aplique uma nova taxa sobre o povo, destinada exclusivamente a obter receita suficiente para custear umas obras de que a ermida de S. Pedro carecia: “(…) e foy nos pedido polos juizes e ofeciães que porquamto eles nom se estrovão a costranger o povo pera aver de coreger a dita irmida e farya bem pouco custo ouuesemos por que eles deitasem taixa polo decto povo pero o dito coregimento da dita irmida e por nos parecer asy bem e seruiço de Deus per este damos licença aos ditos juizes e oficiães pera que eles posam lançar a dita taixa pero o coregimento da dita irmida.”. Não sabemos que obras terão sido feitas, se é que a ermida foi corregida. Sabemos porém que, passados oito anos, concretamente no decurso da visitação de 1533, os inspectores verificaram que o templo entretanto tinha desabado e sido novamente construído, apresentando agora dimensões ligeiramente inferiores à mesma ermida inspeccionada por D. Jorge (agora com 5.50 m de comprimento por 3.30 m de largura, ao contrário dos 6.60 m de comprimento por 3.85 m de largura medidos na visitação de 1510). Tal como em 1510 a ermida continuava sem porta. Não por falta de meios, uma vez que teriam sido entregues duzentos reais em dinheiro a um tal João Moniz para que fizesse e colocasse uma porta na ermida. Porém, volvidos “(…) tres ou quatro añnos”, a porta não foi feita, circunstância que faz com que a Ordem determine que se procure o referido indivíduo, para que este devolva o dinheiro recebido aos juízes e escrivães da câmara, e que seja esta a providenciar, definitivamente, a porta para a ermida, sob pena de ela ser feita à custa dos próprios juízes e vereadores do concelho.
Na mesma carta de provimento (de 1525) constata-se também que o sacrário da igreja matriz continuava a ser fonte de preocupação para a Ordem, uma vez que lhe tinham sido levadas as portas a Lisboa para dourar (a expensas do agora comendador Cristóvão Correia), mas passados três anos ainda não tinham regressado a Alvalade, facto que deixou o provedor espatário desagradado, considerando e prescrevendo este que ”(…) ho decto sacraryo estaa asy mal sem portas mandamos ao recebedor da fabrica que sob pena demil reais pera a dita fabrica tenha cuidado de mandar pelas ditas portas e poolas em o dito sacrario de provicação deste a huu ano”.
Determina a Ordem também que se façam e coloquem, urgentemente, portas novas na entrada principal da matriz, especificando que ”(…) as ditas portas principais serão tamanhas como o arco, em sua grandura necesaria e muito boas“. Prescreve ainda que se aproveitem algumas madeiras da porta principal a substituir, e com elas se faça uma porta “nova” para a entrada lateral sul da igreja.
A 16 de Março de 1529 a Ordem manda demolir a velhinha ermida de S. Sebastião, ordenando que se levante um novo templo em sua substituição, porventura entendendo que o estado de degradação em que o edifício se encontrava já não permitia ou não seria viável fazer a sua conservação “(…) a irmida de Sam Sebastião estaa daneficada e ha mester coregida deribamdoa e tornamdoa a fazer e por que o povo he a ella obrigado mandamos aos juizes e oficiaes que demtro de hu añno a mamdem coreger ha custa do concelho sob pena de quinhentos reais”. A disposição dos espatários é acatada mas, passados quatro anos, o templo estava longe de estar concluído. Com um programa construtivo para uma ermida diferente e maior, certamente terão surgido dificuldades de financiamento e de mão-de-obra especializada, factores que, eventualmente, terão contribuído para o ritmo lento da construção, que na visitação de 1533 apresentava apenas a estrutura da capela-mor, abobadada, com o altar-mor ainda por realizar. Do corpo da igreja apenas estavam feitos os alicerces (de pedra e barro). Curiosamente, apesar de muito faltar para o templo ficar totalmente construído, já apresentava a imagem do santo na inacabada capela-mor “(…) e tem hua imagem de Sam Sebastiam nova muito boa de vulto posta em hua culuna na quall estão tres ramos e é pimtada de verde e em hu dos ramos da parte dereyta esta hu escudo dourado com hu abito de Santiago no meo”. A obra arrastava-se, o tempo passava, e a Ordem, apesar das condições precárias que o edifício em construção oferecia, não quis privar os moradores do concelho alvaladense de poderem continuar a venerar o santo mártir…
Pese embora com algumas vicissitudes e delongas no cumprimento das determinações e ordens dos espatários, registaram-se melhoramentos significativos nos edifícios religiosos alvaladenses ao longo da primeira metade do século 16. Mas não só. Durante o Mestrado de D. Jorge, especialmente depois de 1510, os templos viram também os seus espólios melhorados e aumentados ao nível dos paramentos, dos objectos de função meramente decorativa e das alfaias essenciais para a celebração do culto divino. Principalmente a igreja matriz que se viu melhorada nas alfaias de prata, em boas ornamentações, e em vestiduras de bons tecidos, alguns oriundos do norte de África e da Índia. Benefícios importantes para os quais terá contribuído o novo estatuto de município que Alvalade agora detinha, e que a Ordem Santiaguista não quis deixar de ter em consideração.
(1) D. Jorge de Lencastre nasceu em Abrantes a 21 de Agosto de 1481, e era filho bastardo do rei D. João II e de D. Ana Mendonça (que foi dama da princesa D. Joana), filha de Nuno de Mendonça, aposentador-mor do rei D. Afonso V, e de D. Leonor da Silva. Após a morte trágica do infante D. Afonso, seu único filho legítimo, D. João II tudo fez para habilitar D. Jorge ao trono. Entre 1491 e 1494 concedeu-lhe os mestrados das Ordens de Avis e Santiago da Espada, o ducado de Coimbra e os senhorios de Montemor-o-Velho e Torres Novas. Porém, a pressão e insistência da rainha D. Leonor que pretendia ver o seu irmão D. Manuel no trono (e que pouca simpatia nutria por D. Jorge), conjugadas com as grandes perturbações provocadas pela doença nos últimos tempos de vida do monarca, contribuíram para que D. João II nomeasse, no seu testamento de 1495, D. Manuel, duque de Beja, seu sucessor. D. Jorge de Lencastre faleceu a 22 de Julho de 1550, no castelo de Palmela.
_LPR
Agradecimentos: Ao Dr. António Martins Quaresma, Historiador e destacado membro do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, pelos esclarecimentos sobre os livros litúrgicos.
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