Sob o actual Monte do Roxo é possível observar vestígios muito importantes de uma antiga uilla romana. Existem notícias da existência de estruturas (incluindo tanques forrados com opus signinum em que no interior foram recolhidas grainhas ressequidas de uvas), cuppae, lucernas e outros materiais no século XVIII, data em que algumas peças foram enviadas para o Frei Manuel do Cenáculo, em Beja. O local tem as seguintes coordenadas: 37º57’17”, 02 latitude norte, 08º24’24”,40 longitude oeste e 56m de altitude. O acesso faz-se pela IC1, virando-se à esquerda na primeira estrada de terra batida com palmeiras à entrada, a norte da Mimosa (sentido sul/norte). Á superfície, destaca-se a grande concentração de materiais de construção de época romana, sigillatas galo-romanas, hispânicas e norte-africanas, ânforas lusitanas (Lusitana 2 e Lusitana 4), cerâmicas comuns islâmicas, medievais cristãs e modernas e faianças portuguesas. Da mesma forma, nas cofragens das paredes de taipa da casa principal do “Monte” deparamo-nos com a grande quantidade de materiais romanos reutilizados, destacando-se os materiais de construção (tegullae, imbrices e láteres). Para além destes pode ainda observar-se a presença de sigillatas (onde se inclui um fragmento de bordo de Dragendorf 27), de fragmentos de bojos de ânforas e de fragmentos de cerâmica comum. A presença de uma grande quantidade de materiais de época romana nas paredes em taipa, indicia que o actual “Monte” foi construído sobre as estruturas da antiga uilla, até porque as áreas de maior concentração de materiais situam-se numa área de cerca de 2ha envolvente do Roxo.
Os Elementos Arquitectónicos
De entre o espólio recolhido neste local ao longo dos anos destacam-se os vários elementos arquitectónicos eventualmente datáveis de época visigótica, que poderão ter pertencido a um edifício religioso. Alguns ainda se encontram reutilizados nas estruturas do “monte”, servindo, por exemplo, de poiais.
Neste local foram descobertos três fragmentos de cancela e um mainel, profusamente decorados. O fragmento de cancela de maiores dimensões preserva em bom estado de conservação a sua decoração, possuindo 0,85m de altura e 0,67m de comprimento, medidas máximas, não tendo sido possível determinar a sua espessura. Neste momento, serve de “tapete” junto à entrada da capela de Nossa Senhora do Roxo.
O segundo fragmento de cancela, serve de poial de uma das entradas do “monte”, apresentando a face voltada para cima completamente desgastada, desconhecendo-se se era a parte decorada ou se esta última está voltada para baixo. Tem 1m de comprimento (a altura é indeterminada, pois, pelo simples facto do “monte” estar fechado, não pude medir a peça em questão), apresentando o topo decorado com trifólios ou folhas de acanto estilizadas. O terceiro fragmento está depositado na sede da Casa do Povo de Alvalade e apresenta uma decoração composta por octofólios insertos em quadrados. Preserva 46cm de comprimento, 34cm de altura e 8cm de espessura. No topo a peça está decorada com trifólios ou folhas de acanto estilizadas.
Os dois fragmentos da cancela visigótica melhor conservados, apresentam uma decoração composta por octofólios (rosetas de oito pétalas) inscritos em quadrados e rectângulos. Trata-se de uma decoração semelhante à de uma pilastra recolhida em Corte Piorno, Quintos, concelho de Beja (OLIVEIRA e SUSANA, p. 69, nº39) e de um pilastrim recolhido junto da Igreja de Santa Maria, em Beja (OLIVEIRA e SUSANA, p. 83, nº51). Observa-se ainda numa aduela, numa pia, numa imposta e numa pilastra encontradas em Beja (OLIVEIRA e SUSANA, p. 81, nº49, p. 90, nº 58 e p. 95, nº 63) e depositadas no Museu Regional Rainha Dona Leonor, mais exactamente no núcleo visigótico localizado na igreja de Santo Amaro, todas elas datadas do século VII pelos autores que as estudaram.
A “roseta de oito pétalas”, assim designada por Cruz Villalón (VILLALÓN, 1985, pp. 320 e 321), tem por base quatro folhas muito estilizadas dispostas nas diagonais e sobrepostas a quatro nas medianas, irradiando a partir de um botão central (WRENCH, 2000, p.646).
Apesar de tudo, esta peça de Alvalade demarca-se dos restantes casos conhecidos no território correspondente ao antigo conventus pacensis, sendo menos perfeita na sua concepção do que as que as referidas, registando-se que as folhas da roseta partem directamente do botão, mas em espiral facto que não é muito comum como podemos observar no fragmento de cancela designada por número 1, que pode denotar um cariz mais arcaico ou regional. No mesmo sentido de arcaísmo podemos apontar a irregularidade da utilização em simultâneo de octofólios insertos em quadrados e rectângulos (mesma peça e fotografia).
Em média, os quadrados onde estão enquadrados os octofólios têm 38cm de lado. Os rectângulos têm 38cm de comprimento e 24cm de largura, enquanto que as cartelas que separam os campos têm 2cm de espessura, no fragmento que ainda se encontra no Monte do Roxo. No que se encontra depositado na Casa do Povo de Alvalade, os quadrados têm 30cm de lado.
O suporte dos três fragmentos é o mármore de veios cinzentos e grão médio do tipo de São Brissos. Com o mesmo tipo de suporte foi concebido um mainel que preserva 39cm da sua altura, com o capitel e parte do fuste em bom estado de conservação e bem diferenciados entre si por uma espécie de “gola”. O capitel apresenta como decoração pequenos elementos florais (folha de acanto estilizada ou trifólio), tendo 9cm de altura e 8cm de largura, percebendo-se uma certa tentativa de elaboração de um cubo. A “gola” não apresenta decoração, tem 4,5cm de altura e 7,5cm de diâmetro. O fuste é cilíndrico, sem decoração, 25,5cm de altura e 8,5cm de diâmetro.
Apenas conheço dois exemplares idênticos a este. Um foi encontrado em Santa Lúcia del Trampal, Alcuéscar, Cáceres, cuja cronologia da construção da igreja se situa, muito provavelmente, apesar da controvérsia existente, em época moçárabe (CABALLERO ZOREDA E ARCE, 1995, pp.198, 199 e 215, fig. 5, nº18). O outro foi encontrado no território da antiga civitas Pax Iulia, em Vilares de Alfundão, freguesia de Alfundão, concelho de Ferreira do Alentejo, tendo sido datado do século VII (OLIVEIRA e SUSANA, p. 41, nº11). A representação de trifólios é também observada num mainel mais elaborado do que o identificado no de Alvalade, recolhido em Santa Maria de Melque, datada do século VII ou do século VIII (CABALLERO ZOREDA E ARCE, 1995, pp. 199 e 200).
Tendo em consideração os exemplos aludidos, a atribuição de uma cronologia para esta estrutura é muito difícil. Como já referi anteriormente, neste local, com base na recolha de materiais arqueológicos à superfície, foi possível observar vestígios de uma ocupação humana do local entre o século I e a época islâmica, sendo posteriormente reocupado em época moderna. Nesse sentido, o espólio arquitectónico poderia ser perfeitamente situado cronologicamente entre os séculos VIII e X, tratando-se, portanto de um edifício Moçárabe, não se descurando a possibilidade de se tratarem efectivamente de elementos arquitectónicos de época visigótica. Enquanto não se efectuarem escavações arqueológicas neste local não é possível determinar com maior exactidão a cronologia da construção do edifício religioso. Dessa forma, deixo prudentemente esta questão em aberto.
Algumas referências históricas sobre o Monte do Roxo
Sob o actual Monte do Roxo existem, como já foi indicado, vestígios de uma antiga uilla romana cristianizada e ocupada no decorrer da ocupação visigótica. Apesar de, até ao momento, não terem sido identificados vestígios da ocupação em época islâmica, o local foi novamente habitado depois da reconquista deste território pelos membros da Ordem de Santiago de Espada que aí construíram uma igreja, a qual foi sede de paróquia até ao século XX, época em que entrou em ruína, acabando por desaparecer, sendo substituída pela capela actualmente consagrada a Nossa Senhora do Roxo. Esta última consagração surge na cartografia antiga sob a designação de Sant’Ana ou Santa Anna (sic) do Roxo3. Terá a igreja visigótica sido consagrada à mãe da Virgem Maria ou essa consagração só ocorreu aquando da (re) construção da igreja por parte dos membros da Ordem de Santiago de Espada? Só uma investigação mais profunda da documentação, que espero fazer em breve, permitirá responder de forma mais concludente a esta questão.
Devo ainda chamar a atenção para o facto de se tratar de mais uma uilla romana cristianizada e ocupada em época de dominação visigótica, que vem engrossar o grupo de uillae que continuaram ocupadas para além do século V. A tradição religiosa foi perpetuada após a reconquista cristã, aparecendo associada, juntamente com a ermida de São Roque, situada na Herdade do Faial, freguesia de Alvalade, aos topónimos de Ermidas-Aldeia e, posteriormente, Ermidas-Sado.
Conclusão
No presente artigo pretendeu-se dar a conhecer um conjunto de evidências que comprovam a continuidade de ocupação de uma antiga uilla no período subsequente ao final da ocupação romana do território, devidamente comprovada pela construção de ecclesiae que marcam o espaço e uma nova realidade religiosa.
Esta nova realidade acaba por marcar de forma distinta os local, sendo possível equacionar que a antiga uilla do Monte do Roxo a terá mantido sua antiga funcionalidade.
De qualquer forma, a tradição de culto religioso continuou com a existência de uma capela associada a um “monte”, (Monte do Roxo), marcando-se vincadamente na toponímia local desde a idade média até à actualidade.
A apresentação dos dados referentes a esta estação arqueológica permite questionar, de certa forma, a teoria de abandono das antigas uillae no século V, verificando-se que, nas zonas em que se insere, se encontra envolvida por outras uillae com ocupação até ao período de ocupação visigótica.
No que respeita ao Monte do Roxo, destaca-se um possível vicus situado em Alvalade e as uillae de Conqueiros e Defesa 3.
A situação apresentada no parágrafo anterior vem de encontro à opinião de alguns autores que recentemente têm vindo a questionar o abandono das antigas uillae face às invasões bárbaras. Se é certo que em alguns casos isso pode ter acontecido, tem-se vindo a constatar que muitas das antigas uillae mantiveram alguma vitalidade, em períodos mais tardios. Neste campo, podemos pensar que, numa fase tardia da presença romana do território, a evolução da destes estabelecimentos conheceu cinco formas distintas. Por um lado, continuamos a observar a existência de uillae pertencentes a indivíduos com grande poder político e económico, sobretudo ligados à nobreza e ao clero (sobretudo bispos). Em alguns casos, estas grandes uillae poderiam ter uma ecclesia associada. A descoberta de algumas uillae muito opulentas nos séculos IV e V serão disso exemplo e neste campo talvez possamos incluir o Monte do Roxo.
Ainda numa perspectiva de uma continuidade de ocupação do espaço como uilla, temos o caso dos estabelecimentos deste género que são ocupados por colonos, servos, habitantes locais ou gestores das próprias propriedades, após o abandono efectuado pelos antigos proprietários, em locais onde se observam transformações drásticas a nível estrutural, onde no lugar de mosaicos e termas passamos a ter zonas de transformação, num caso em que, como afirma Javier Arce, se perde o conceito de domus romana (ARCE, 2005, pp.240 e 241). Nota-se então que a antiga pars urbana perde a sua antiga finalidade e passa a ser utilizada como zona de armazenamento (ARCE, 2005, P.241 e RIPOLL e ARCE, 2001, p.26).
Por outro, temos o caso das uillae que evoluem para povoados, em especial naquilo que podemos designar por vici, onde podemos eventualmente integrar São Bartolomeu (Alvito).
Existem ainda aquelas que, por se situarem em pontos estratégicos junto a vias de comunicação ou em zonas especiais do ponto de vista religioso, se transformam em monasteria, como é o caso do Montinho das Laranjeiras, no concelho de Alcoutim e poderá acontecer também com São Francisco, em Alvito.
Por fim, temos aquelas que foram realmente abandonadas. No entanto, pelo que se tem vindo a observar, nem todas as uillae foram abandonadas no século V. Existem muitos casos em que uillae foram abandonadas muito antes desta centúria. Por exemplo, as uillae de Courela das Antas e Boavista, no concelho de Cuba, poderão ter sido abandonadas em finais do século II (SILLIÈRES, 1994, pp.92-95), a uillae das Adegas, Ferrarias 1 e Sobral das Barras, no concelho de Alvito, Labogadas 1 e Torre Vã 3, na freguesia de Panóias.
Panóias, concelho de Ourique, e ainda Ameira 3, na Freguesia de Alvalade, concelho de Santiago do Cacém não parecem ter continuado ocupadas a partir do século III (FEIO, 2004, pp. 2-5). Isto pode indicar que as fases de abandono e concentração da propriedade não são características da fase final do império mas ocorreram com alguma constância entre os séculos I e V.
Para além da questão da continuidade da ocupação do espaço, a localização destas antigas basílicas cristãs vem contribuir para o aprofundamento do estudo da cristianização do território correspondente ao antigo Conventus Pacensis, permitindo levantar algumas questões bastante pertinentes. Por exemplo, estará a implantação destes espaços religiosos associada a iniciativas privadas? A transformação de um sector de uma uilla em oratório privado ou numa ecclesia observa-se com alguma frequência, aparecendo inclusivamente referenciada da sua existência e da realização de alguns actos religiosos nestes espaços em alguns cânones dos concílios Hispânicos do século IV, como por exemplo nos cânones 5 e 9 do concílio de Toledo I (RIPOLL e ARCE, 2001, p. 27). Corresponderiam a antigas paróquias?
As respostas a estas e outras questões só poderão ser dadas a partir do momento em que venham a efectuar-se escavações arqueológicas nestes locais e com um estudo mais global da forma como se processou efectivamente a cristianização deste território. Apesar de tudo, estamos perante mais um exemplo da implantação do cristianismo no território.
_Jorge Feio
Artigo relacionado: A ocupação romana em torno de Alvalade
Tambem tenho o gosto das “pedras”. Muito bom artigo – saudações – AM
Já conseguiu resolver a questão de Sant’ana?
Santa Ana, ou Sant’Ana ou Santana era a Avó de Jesus Cristo, mãe da Virgem Maria, muito idolatrada no início da cristianização e pelas comunidades cristãs hispânicas. Note-se a frequência deste topónimo em áreas de forte presença paleocristã e moçárabe, como por exemplo na Serra de Portel, onde temos Santana da Serra.
O seu culto em Alvalade pode estar intimamente ligado à presença de comunidades cristãs antigas no território, que continuaram sob domínio islâmico.