José Raposo Nobre, alvaladense adoptado, presidiu os destinos do concelho de Santiago do Cacém durante 3 anos, eleito como independente nas listas da FEPU nas autárquicas de 1976.
Foi comerciante e um dos principais animadores culturais do concelho. A ele se deve, em grande parte, a dinamização do antigo Cinema de Alvalade, que durante várias décadas recebeu muitas das maiores figuras do mundo artístico nacional na segunda metade do século passado e os grandes filmes da indústria cinematográfica mundial, que deixaram marcas em várias gerações de alvaladenses. O seu contributo para o desenvolvimento cultural de Alvalade não tem, até hoje, paralelo.
Já na casa dos oitenta anos de vida, José Raposo Nobre é uma das maiores referências e exemplos de cidadania de Alvalade. Continua activo e interessado pela terra que o acolheu, exercendo o lugar directivo de vice-presidente da Casa do Povo de Alvalade e dinamizando o blog “Viver Alvalade” que criou, onde escreve algumas das suas vivências e opina sobre os temas que lhe são mais próximos. Alvalade deve-lhe uma homenagem de reconhecimento pelo seu exemplo de vida.
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José Raposo Nobre presidente por três anos
(entrevista ao portal “Setúbal na Rede” em 25 de Fevereiro de 2002)
O comerciante e conhecido animador cultural de Santiago do Cacém foi o primeiro autarca eleito no concelho. O seu conhecimento da terra e a amizade com a população levou a que, nas autárquicas de 1976 a FEPU derrotasse o PS por uma margem superior a 10%. 25 anos depois José Raposo Nobre recorda os anos da ‘corrida’ às obras para infra-estruturar o concelho e a mobilização popular que o executivo era obrigado a refrear sob pena de haver obra a mais.
Setúbal na Rede – Em 1976, o PCP propôs o seu nome para liderar a lista da FEPU às primeiras eleições autárquicas. Como é que surgiu o convite?
José Raposo Nobre – Eu nunca fui do PCP, pelo que sempre me candidatei como independente. Creio que o convite surgiu pelo reconhecimento da actividade que desenvolvi, como vice-presidente da Comissão Administrativa da Câmara, entre 1974 e 1976. Adquiri uma grande experiência durante aqueles dois anos, nomeadamente por ter participado semanalmente, com os outros 12 autarcas do distrito, nas chamadas RIC/Reuniões Inter-Câmaras, e através das quais passámos a ter uma visão bem mais alargada do que é a gestão dos municípios e dos problemas da região em que estão integrados. Por outro lado, as populações identificavam-se muito comigo, pois antes da minha actividade política era já conhecido por toda a gente devido à minha actividade comercial e às actividades ligadas à cultura. Quando surgiu o convite não pude recusar porque achava que não devia defraudar as expectativas das pessoas que acreditavam em mim. Achava que tinha uma dívida para com a população e, por essa razão, aceitei encabeçar a lista. Nunca quis fazer carreira política, pelo contrário, e daí a decisão de, no mandato seguinte, deixar a gestão da Câmara e voltar a cuidar dos negócios.
Setúbal na Rede – Acreditava numa vitória da FEPU?
JRN – Sempre acreditei numa vitória da coligação porque o PC, que era maioritário nesta coligação, tinha uma presença bastante forte no concelho. Embora os nossos opositores, do PS, fossem pessoas com grande prestígio. Recordo-me que a lista socialista era liderada pelo professor Joaquim Padilha de Brito, um professor primário com grande prestígio na terra, e muito amigo do ex-presidente da Câmara de Setúbal, Mata Cáceres. De resto, quando se soube que eu tinha ganho as eleições, o primeiro abraço que recebi foi do meu opositor, do PS. Na lista da FEPU estavam pessoas em representação de todas as freguesias do concelho, umas filiadas no PCP, outras no MDP, e outras ainda, como eu, eram independentes. Nunca me filiei no PCP, nem noutro partido qualquer, porque não achei necessário. Primeiro queria manter a minha independência, e depois não queria fazer carreira política. A minha primeira obrigação era para com a população do concelho, que me conhecia bem, mas também era para com as lojas que eu tinha e que davam emprego a várias pessoas. Como tinha que garantir o bom andamento do comércio para poder garantir o emprego daquelas famílias que dependiam de mim, nunca me passou pela cabeça avançar com a actividade política ou partidária.
Setúbal na Rede – Recorda-se de como correu a campanha eleitoral?
JRN – Lembro-me de que a campanha decorreu de uma forma bastante ordeira, apesar de nos lembrarmos perfeitamente de que, no ano anterior, na preparação para as eleições para a Constituinte, terem ocorrido algumas ameaças de bomba por parte de forças de extrema-esquerda. Mas, felizmente, isso nunca chegou a acontecer. Somos uma terra pequena, onde toda a gente se conhece e onde, apesar das opiniões políticas de cada um, sempre prevaleceu o respeito entre todos. Para as autárquicas, fizemos uma campanha intensa, com vários comícios em todas as localidades e mobilizámos facilmente a população para as sessões de esclarecimento. De tal modo que, um dia, Joaquim Serra, então do Comité Central do PCP, teceu um enorme elogio ao nosso trabalho, afirmando que o nosso discurso era eloquente e galvanizava as pessoas. Lembro-me apenas de uma localidade onde as coisas não correram tão bem. Foi em Abela, onde existiam ainda muitos resquícios do antigo regime. Como era uma terra muito fechada, as pessoas receavam a reacção da população. Por essa razão, um dia antes de eu fazer o comício na Abela, houve quem me avisasse e me dissesse para ter cuidado, pois esperava-se uma má recepção da população. Mas esse receio não se concretizou e o comício correu muito bem.
Nos nossos discursos eram abordadas as questões mais prementes para o concelho, como era o caso do saneamento básico, das estradas, da electrificação, da necessidade de terrenos para construir casas para o povo, e de tudo o que era infra-estruturas, como os sanitários e os lavadouros públicos. Naquela altura, o concelho de Santiago do Cacém tinha carências enormes a todos os níveis, pelo que o que queríamos era acorrer aos problemas mais urgentes da população. Mas o nosso trabalho na campanha eleitoral era também o de ensinar as pessoas a votar, pois, tratando-se das primeiras autárquicas, ninguém tinha experiência nesta matéria. Apenas tínhamos como referência as eleições para a Constituinte, que tinham ocorrido um ano antes. Ora, andámos de aldeia em aldeia a mostrar às pessoas como se vota, o que eram os boletins de voto e onde eram as respectivas assembleias.
Setúbal na Rede – Foi eleito por 45,8% dos votos contra 34,4% do PS. Esperava esta diferença de votos?
JRN – Não nos surpreendeu, embora Santiago do Cacém fosse uma incógnita. Pelas suas características de zona rural de grandes latifúndios, viveu sempre num regime bastante feudal. De tal modo que até a Legião Portuguesa aqui tinha forte implantação. Durante décadas foi uma zona ligada ao antigo regime e alguns ministros daquela época estavam ligados ao concelho por laços de família. Mas Santiago era também a terra de Manuel da Fonseca e de Mário Pereira, dois homens profundamente de esquerda e que marcaram muito a vida do concelho. Vivemos nesta dúvida durante todo o período de campanha eleitoral, mas sempre na esperança de que a população votasse bem. Tínhamos indicadores de que isso poderia acontecer, quer pelas reacções aos nossos comícios, quer pela posição que os santiaguenses tomaram logo após a revolução de Abril. O povo foi-se libertando dos medos da ditadura e chegou uma altura em que as pessoas só queriam era fazer coisas, sair à rua e mudar tudo. Naquele ímpeto de mudar, tínhamos de ser nós, Comissão Administrativa, a tentar refrear ou conduzir de maneira mais racional a vontade popular.
Setúbal na Rede – Quais foram as primeiras medidas que tomou, após ter sido eleito?
JRN – Uma delas foi, sem dúvida, responder à necessidade de terreno para construir casas e acabar com as más condições em que viviam inúmeras famílias. Essa necessidade, tal como todas as outras, tinham sido identificadas durante o levantamento que fizemos na Comissão Administrativa. E era uma necessidade tão grande que logo no primeiro mandato tivemos que iniciar a aquisição de terrenos para que as pessoas pudessem fazer as suas casas. Ao abrigo dessas medidas, foram construídas habitações em todo o lado, desde São Domingos à Abela, passando pelo Cercal e por Santiago. Foi um trabalho intenso, o dos primeiros anos dos executivos eleitos, pois tivemos de acorrer a tudo o que era problema. Esse trabalho veio a dar frutos mais tarde, uma vez que no início dos anos 80 todos os aglomerados com mais de 500 habitantes dispunham, já, de água, luz e esgotos.
Setúbal na Rede – Como é que a Câmara conseguia fazer obra, numa altura em que os municípios não dispunham de financiamento da administração central?
JRN – Contrariamente à maioria dos municípios do distrito, Santiago do Cacém tinha receitas próprias que lhe permitiam uma gestão minimamente aceitável. Para além disso, dispúnhamos de algumas verbas distribuídas pelos ministérios, de acordo com os projectos que íamos apresentando. De modo que sempre conseguimos dinheiro para o que era mais urgente, no concelho. Mas tivemos sempre problemas em gerir o concelho por causa do Gabinete da Área de Sines, uma estrutura da administração central pela qual passava praticamente todo o desenvolvimento de Santiago do Cacém. Para se construir qualquer coisa tínhamos de pedir ao gabinete e isso acabou por atrofiar bastante a evolução desta região. Os problemas só acabaram quando o GAS foi extinto. A urgência do concelho passava também por equipar a Câmara de meios, pois o que dispúnhamos era pouquíssimo para as necessidades. Não havia técnicos permanentes nem viaturas. Por isso é que comprei um carro a gasóleo e, durante muito tempo, o meu carro particular esteve ao serviço da autarquia. Lembro-me de que naquela época dávamos tudo o que tínhamos, desde o tempo até aos meios, para poder mudar a vida das pessoas no concelho. A minha sorte foi ter uma esposa compreensiva e empregados muito devotados ao trabalho. Por isso é que as lojas se aguentaram.
Setúbal na Rede – No seu único mandato como presidente, contou com quatro vereadores da FEPU e três do PS. A relação entre maioria e oposição era construtiva?
JRN – Sempre nos demos muito bem e os vereadores da oposição tiveram pelouros, embora não fossem a tempo inteiro porque as pessoas tinham as suas vidas profissionais. Mas trabalhámos todos muito bem e em estreita colaboração. Tivemos apenas uma pequena divergência, mas foi sanada de imediato. Na altura, Santiago tinha poucas salas para reuniões e houve uma altura em que a CGTP pediu à Câmara uma sala para reunir. Nós demos autorização, eles reuniram mas o PS parece não ter gostado do resultado desse encontro. O que a central sindical discutiu e aprovou foi uma manifestação em Lisboa, para correr com Mário Soares que, na altura, era Primeiro-ministro. Os vereadores do PS não gostaram e ameaçaram demitir-se. Então o Governador Civil veio até minha casa para tentar amenizar as coisas. Eu disse que também não sabia para que era a reunião e lá foi ele a casa dos vereadores explicar o que se passou. Os eleitos socialistas aceitaram a explicação e as relações entre a maioria e a oposição voltaram ao normal. No segundo mandato as relações continuaram bastante amigáveis, embora eu já não fosse presidente.
Setúbal na Rede – Porque é que não se recandidatou ao segundo mandato?
JRN – Não aceitei recandidatar-me porque a minha vida pessoal e profissional começava a ressentir-se. No final do primeiro mandato disse que não me recandidatava porque tinha obrigações perante a família e perante as pessoas a quem dava emprego nas lojas. Desta forma o PCP teve de encontrar outro cabeça de lista. Mesmo assim, aceitei a proposta de integrar a lista e vir a ser vereador para dar uma ajuda ao presidente eleito, José Eduardo Cheis, que era de Sesimbra e conhecia pouco a realidade de Santiago do Cacém. Mesmo assim, ainda exerci, como vereador da Cultura, o mandato quase todo, em vez dos seis meses que tínhamos combinado. No segundo mandato reforçámos a maioria absoluta, pela APU, e elegemos quatro vereadores contra dois da AD e um do PS. Creio que a AD, que não tinha muita expressão no concelho, conseguiu ultrapassar o PS porque os autarcas socialistas não mostraram tanto trabalho como a população esperava. Por outro lado, havia o fenómeno de Santo André, onde a população era bem diferente do resto do concelho, particularmente em termos de doutrina política. Eram pessoas vindas das ex-colónias e de concelhos do norte do país, pelo que tinham uma cultura diferente. Mas foi um mandato riquíssimo, pois como tínhamos resolvido a maioria dos problemas básicos nos primeiros três anos de executivo eleito, dedicámo-nos agora a questões menos básicas como era o caso das casas da cultura e da construção de sedes de colectividades.
Fizeram-se escolas, vários postos de saúde, dezenas de quilómetros de estradas, diversos balneários e centros de idosos com a estreita colaboração das populações. E fizemos uma coisa a que poucas câmaras se dedicaram: o ensino de idosos. Criámos mais de trinta postos de escolarização de adultos e foram centenas as pessoas que aprenderam a ler. A população era muito activa naquela época, pelo que a Câmara apoiava as suas reivindicações com material e as comissões de moradores organizavam as pessoas, com máquinas e mão-de-obra, para fazerem as construções. Envolvi-me bastante nesta executivo e quando percebi estava quase no final do mandato. Assim, em vez dos seis meses que tinha estipulado, fiquei quase até ao final do mandato e saí poucos meses antes das eleições de 1982, para evitar que me convidassem para o terceiro executivo.
Setúbal na Rede – 25 anos depois, continua a acreditar no poder local?
JRN – Aqueles foram os anos mais belos e ricos da minha vida. Foi uma época inesquecível e que marcou cada um de nós. Nunca tive razões para deixar de acreditar no poder local e na sua importância para as populações. Foi com os autarcas de 1976 e dos mandatos seguintes que o poder local que hoje temos se construiu e, pelo acompanhamento que tenho vindo a fazer da vida autárquica, nomeadamente nesta zona do Alentejo, continuo a achar que esta é a melhor forma de resolver os problemas das populações. Continuamos a estar perto dos eleitores e a sentir, como ninguém, os problemas com que se debatem todos os dias. Por isso continuo a defender uma autarquia com participação popular.
Obrigado por recordar as minhas atividades, mas não fiz mais do que retribuir aos alvaladenses tudo o que recebi deste povo e se continuar a ter vida e saúde, manterei bem vivo o blog Viver Alvalade, sempre sem esperar mais do que o carinho que tenho recebido.
JRN
Fico contente por conhecer esta fase da sua vida que não acompanhei pois já tinha saido de Alvalade.
Estou muito orgulhosa de o conhecer, Sr. Nobre.
Muitas vezes me questionei sobre a data em q o Sr. José Nobre tinha ganho as eleições em Santiago do Cacém. Obtive por este meio a resposta. Longe vão os tempos em que Santiago progrediu. Hoje a minha segunda terra encontra-se moribunda. Santiago perdeu-se no tempo, morreu o desenvolvimento…..estagnou, e tenho muitas saudades de Santiago, quando Santiago……………
O meu abraço ao Sr. José Nobre.