Em 1753, residia em Alvalade o sr. Manuel Fernandes, sapateiro de profissão, casado à face dos altares em harmonia com as disposições tridentinas, com a srª Mariana Espírito Santo. Moravam numa casa da Rua da Cruz, também conhecida pela Rua Quente, quase defronte da albergaria da Misericórdia a cuja irmandade o sr. Manuel Fernandes pertencia. Orçavam, ambos, pelos 35 anos, vivendo modestamente mas ao abrigo de privações. Os vinhos de Alvalade tinham fama: eram palheto, bem apaladados, mas bastante alcoólicos, Havia vinhas ao redor da vila existindo por isso alguns vinicultores, com boas adegas. Quase todos os dias chegavam e saiam recoveiros com borrachões grandes, de coiro pergado, pois ainda não havia o vinho dos barris e das quartolas. Nas adegas ainda eram usadas as tradicionais talhas de barro, grandes, também pergadas, que ainda conheci. Pois o “ilustre” sr. Manuel Fernandes, bom mestre sapateiro, trabalhava bem, e, bota ou sapato de vitela francesa ou cordovão que se pretendesse fazer, logo lhe ia ter às mãos. A fartura deslumbrou-o e, de certo dia em diante, o mestre Manuel começou a festejar, solenemente, às segundas-feiras, e tão solenemente que, quase sempre, as suas festas tinham vésperas e completas pois começavam ao Domingo e seguiam até quarta ou quinta-feira. Nesses dias, era certa a sua presença nas tabernas ou nas adegas aonde havia o velho Falerno. A vida doméstica do mestre Manuel ressentiu-se, imediatamente, de tão compridos e dispendiosos festejos. A freguesia começou a debandar e a srª Mariana não tinha muitas vezes com que prover as necessidades da casa. Chorava, lamentava-se, às escondidas, porque se envergonhava de se mostrar em tais circunstancias. “Olha Manel, isto não vai bem, tu bebes demais, a freguesia vai-se embora, pouco ou nada fazes e eu quero tratar da comida e não tenho com o quê. Passamos mal. Emenda-te e lembra-te da vida sossegada e farta que tinhamos quando tu não bebias”. “Mas ouve cá Mariana, ele é tão bom que, em se principiando tem que se ir até ao fim”. “Pois, se não tem emendas eu vou servir aí para qualquer monte e tu governa-te como quiseres”. O mestre Manuel não se emendou e continuava a entregar-se, cada vez mais, à embriaguês. Bebia, bebia até que o vinham trazer a casa, entrando em seguida num sono profundo que lhe durava 36 ou 48 horas. Ficava comatoso. “Que desgraça faria eu para sofrer tamanho castigo?”, dizia consigo a srª Mariana. Mulher pudoroza, que nunca acusou, publicamente, nas suas conversas, o seu marido. “É o destino”, dizia, “é o destino”. Mas a D. Mariana não se consolava e procurava a forma de remediar o mal. Foi procurar o cirurgião da câmara, Francisco da Costa, o boticário Isidoro da Fonseca e até ouviu o barbeiro-sangrador José António Oliveira, que eram quase seus vizinhos, a ver se era possível conseguir que o seu homem tomasse horror ao vinho. O Dr. Costa receitou, o sr. Fonseca aviou e mestre Manuel engoliu, mas ficou na mesma. E como a droga lhe deixou mau gosto na boca, apesar de lhe ter sido ministrada à sucapa, pela D. Mariana, com um xarope de ameixas que ela preparava, para lhe curar uma suposta constipação, cuspia, cuspia, sem descanso, só deixando de cuspir quando apanhou outra perua. Não desanimou a srª Mariana, que voltou à botica a dar conta do que se passava. O sr. Fonseca foi dizendo que aviara a receita porque vinha do cirurgião, mas que, logo, franzira o nariz, prevendo que não daria resultado algum, mas que não desanimasse porque ele ia preparar uma garrafada que o havia de curar. “Pois, sr. Isidro, faça favor porque estou aflita”. Mestre boticário preparou nova xaropada, feita, desta vez, com vinho para melhor ser ingerida pelo doente. Mestre Manuel bebeu, mas logo que acabou…”raios te parta, ò Mariana, quem te vendeu este vinho?” “Foi ali o Travassos”. “Atravessado precisava ele sê-lo, com uma sevela. Grande cabrão…raios o partam mais ao vinho”. E cuspia, cuspia sem fim. Mestre Manuel teve que ir curar a empinheira com outra carraspana, e a pobre mulher, cada vez mais aflita, procurou o sangrador. Mestre José António sorriu-se com ares protectores e foi dizendo: “Olhe sôra Mariana, isto de surjões (cirurgiões) e boticairos, é tudo uma léria. Eles não sabem nada disto. Pois, há lá coisa melhor do que uma sangria a tempo e a horas? Quem é que pode ter saúde com sangue ruim no corpo?”. “Mas então eu terei que mandar sangrar o meu homem? Valha-me Deus!”. “Pois srª Mariana, a sangria é boa quando vem a tacho, mas não se aflija porque eu sei de um remédio feito com sangue de enguia, pele de cobra e mãos de sapo. Ele toma-o e nunca mais bebe vinho”. “Mas, ele desconfia se lhe sabe mal”. “Não sabe, porque se lhe dá num cozimento com marmelos, alcaçuz e ameixas e ele come aquilo como galinha”. “Se assim fosse que alegria a minha, Mestre José”. “Fique certa que é remédio seguro, porque já tem sido experimentado com bom resultado”. “Pois faça como diz mestre José António”. Mestre barbeiro-sangrador levou uns dias a arranjar o sangue da enguia, a pele de cobra e as mãos de sapo. Logo que acabou, chamou a srª Mariana e disse-lhe, em segredo: “Olhe que ele tem que beber isto tudo de uma vez”. “Mas não será muito?”. “Aperte-lhe o nariz e faça-o engolir tudo”. Veio a srª Mariana para casa, e mestre Manuel tossiu. “Tu apanhaste Sol, Manuel!”. Dali a pedaço, mestre Manuel tossiu outra vez. A srª Mariana não descansou enquanto não o meteu na cama. Benzeu-o do Sol, untou-lhe os rins com azeite, polvilhando-lhe as costas com farinha de trigo, tudo isto acompanhado da reza cabalística que ela sabia. “Olha que logo tens que tomar um xarope”. “Aí vens tu com os xaropes. Se é tão bom como o outro toma-o tu”. “Não, este é outra coisa que te cura depressa e ficas bom”. “Olha a benzedura dos rins soube-me bem”. “O xarope ainda te vai saber melhor”. “Mas xarope de quê”? “Xarope de marmelos, de ameixas, com mel alcaçuz e leva também uma gema de ovo”. “Ora falta-lhe o melhor”, diz mestre Manuel. “Mas não vás ao Travasssos, porque sou capaz de lhe partir a cara. Quem vende vinho como o que ele vendeu outro dia precisa ser enforcado”. “Não digas tolices Manuel. Está caladinho. Logo mais tarde tomas então o xarope para suar alguma coisa”. Por volta das 11 horas da noite, mestre Manuel pôs o xarope à boca mas não foi capaz de o engolir todo. Serviu-lhe de vomitório e de purgante drástico. O pobre Manuel vomitava as tripas e já não abotoava as ceroulas, porque as descargas eram tão frequentes que não dava tempo de abotoar-se, apesar de ele usar calças de alçapás. Andou mestre Manuel durante algumas semanas muito enjoado e mau comedor e com aparencia de icterícia. A srª Mariana assustada procurou o barbeiro-sangrador, dando-lhe conta das suas apreensões. “Não tenha sustos srª Mariana. Para ele se curar tem de passar por aquilo. É para enjoar o vinho. Vá descansada”. “Maldito xarope que me deste, mulher. Tudo me sabe mal. Ando enjoado. Qualquer dia atiro-me ao Pego do Toiro”. “Credo, Santo nome de Jesus! Uma pessoa destruir o que Deus fez e ir procurar uma coisa que é tão certa! Tu estás doido Manuel”. “Não estou doido, não. Vou tomar ar”. E arejou. Parou na primeira taberna e começou a tomar “ar”…até que se adormeceu. Compreendeu a srª Mariana que fora mais uma vez ludibriada, e começou a cogitar a melhor forma de corrigir o seu homem. Trouxeram-lho, uma ocasião, em charola, já adormecido, e ela mandou-o colocar sobre a sua cama de bancos, com grassa enxerga de aveia. Quando observou que mestre Manuel já dormira 36 horas e não acordava, compreendeu que só acordaria às 48. Estava em pleno letargo. Nada ouvia, nada sentia, e não se lhe percebia a respiração. De repende a srª Mariana entrou num choro, acompanhado de ais aflitos, que chamaram a atenção da vizinhança. “Que é isto srª Mariana? O que tem”? “Ai meu Deus! Que desgraça a minha! Morreu o meu homem”. “Oh coitada, então o mestre Manuel morreu? Coitadinha”. E foram levantar a cortina de chita que encobria o vão da porta do quarto, e lá estava o morto estatelado sobre a cama. Correu veloz a notícia, e a vizinhança veio fazer, com a srª Mariana, a velada ao cadáver, trazendo cada um o seu candeeiro de azeite. A Misericórdia, de quem o falecido era irmão, mandou, como era uso, o irmão porteiro tocar as matracas por toda a vila a fim de prevenir os outros irmãos de que haveria enterro, nesse dia, ao pôr do sol. Outros vieram com a tumba aonde o cadáver deveria ser colocado, e depuseram-na no meio da casa. Um dos condutores perguntou à srª Mariana se tinha mortalha, ou se queria a da Santa Casa. Que tinha mortalha, respondeu, e trouxe um lençol de linho grosso que tinha na arca. Com ele foi forrada, interiormente, a tumba, e nela depositado o cadáver do sr. Manuel Fernandes, sobre o qual cairam as duas dobras do lençol, no qual ficou envolto. Seguidamente se dobraram sobre a tumba as duas metades da tampa que abria para os lados e, cuidadosamente, fechadas. Os sinos da Matriz e a sineta da Misericórdia dobravam a finados e no corpo da igreja paroquial já o coveiro levantara o taipal e começara a abrir a cova. A srª Mariana clamava as suas lamentações acompanhadas de choro compulsivo. “Sossegue srª Mariana, tenha resignação. Já não tem remédio, agora é conformar-se com a sua sorte”. Mas coitada, não tinha consolação possível. Uma hora antes do por do sol, a casa estava cheia de pessoas que deveriam acompanhar o funeral e consolar a srª Mariana, quando, de repente, de dentro da tumba, se ouvem pesadas sapatadas e fortes murros na tampa que, fechada como estava, não cedeu. Todos fugiram, em debandada e para longe, ficando somente a srª Mariana. De dentro, uma voz gritava: “Tirem-me daqui que me falta o ar”. “Não filho, tu estás morto e vais a enterrar dentro de pouco”. “Mas tu não me ouves, não vês que sou eu”? Não filho, tu estás morto, quem fala é o teu espírito”. Novos acessos de fúria mas os aldrabagatos não cediam. Pouco depois, alguns dos mais curiosos espreitavam, de longe, encostados à parede fronteira, na rua, a ver o que se passava e lá do largo diziam: “Ó srª Mariana, é o espírito dele”: Então é que o susto foi geral, não fosse o espirito do mestre Manuel alojar-se no corpo de alguém, e ninguém se assomava à porta com medo. Entretanto os aldrabagatos, a poder de tantos encontrões, foram-se deslocando e a tampa abriu-se. De dentro, saiu hirto e desgrenhado, o “cadáver” de mestre Manuel, que fugiu imediatamente para a rua e foi sentar-se nos degraus do pelourinho que, então, ainda estava no meio da Praça. Fincou os cotovelos nos joelhos, e meteu a cara entre as mãos, fazendo com grande frequência, grande provisão de ar. Dali, pôde ouvir o toque dos sinos para o seu funeral, assistir ao regresso da tumba à Misericórdia e teve desejo de ver o sacristão recolhendo as opas negras e a bandeira que havia de abrir o seu cortejo funebre. O medo afastava toda a gente, e mestre Manuel tinha em seu redor larga clareira. A srª Mariana logo que viu o “cadáver” ao pé, desmaiou, e assim esteve, largo tempo, estendida, até que o cirurgião e o boticário a borrifaram e lhe ministraram água de flor de laranjeira. Meteram-na na cama. O “cadáver” de mestre Manuel, logo que se sentiu mais desoprimido, com o fresco da noite, meteu-se em casa e fechou a porta. A srª Mariana dormia, e os dentes de mestre Manuel procuravam, na cozinha, qualquer coisa em que pudessem enterrar-se. Lá estavam ainda alguns pedaços de pão e restos de carne. Estava voraz, o sr. Manuel. Reconfortado, deu-lhe de novo o sono e foi deitar-se ao lado da sua consorte que, também, dormia. Passaram-se algumas horas, e a srª Mariana acordou, tacteando com a mão, encontrou a cara do seu homem. “Então tu não morreste, homem”? “Eu não, e tu “? Os acontecimentos tinham-lhes abalado, fortemente, os nervos, e novamente adormeceram até alta manhã. Foi a srª Mariana a primeira a erguer-se. Arrumou a casa, queimou alecrim e arruda para beneficiar o ar e afugentar os espíritos maus, e quando ouviu mestre Manuel a bocejar e a espreguiçar-se, foi cuidar da açorda no tacho com dois ovos, para o almoço. Mestre Manuel andava sorumbático, e não saia de casa senão para o quintal. E não consentiu, durante bastante tempo, que a porta da rua permanecesse aberta. Tinha muitos consertos a fazer e algumas obras novas, de modo que, trabalho assiduo foi servindo e adquirindo nova clientela, pois era bom artista. Não lhe faltava a clientela feminina, porque as raparigas e as lavradoras abastadas gostavam dos sapatos e das botas que mestre Manuel lhes talhava. E, como era a srª Mariana quem entregava as obras, quase sempre recebia o seu convite ou melhadura que a satisfação exuberante das freguesas, lhe punha no regaço. E assim, queijo, leite, mel e ovos, sempre a srª Mariana tinha, com abundância, em sua casa. Farto de trabalhar, à porta do quintal, mestre Manuel sentia já a nostalgia da rua, e, por isso, abriu só metade da porta da frente, e com a luz que lhe vinha do postigo ali montou novamente a sua tripeça e mesa de trabalho. Mal sabia ele os maus bocados que ia passar. Os garotos, assim que o pressentiram próximo da porta, quando passavam, não se continham e largavam aos berros: “Larga a tumba, larga a tumba”. Mestre Manuel criava sangue de bugio, com estas partidas dos garotos que tanto o azedavam, até que, numa noite, à ceia, mostrou-se enfadado e com desejo de se ausentar, porque, um dia, perdia a cabeça e dava cabo de um garoto. “Valha-te Deus, Manuel! Tu não sabes lidar com esta gente. Olha, durante uma semana tapa os ouvidos, não oiças coisa alguma, e eles, vendo que não lhes dás troco, calam-se”. A receita deu resultado. Os garotos não recebendo o troco da garotice, compreenderam que se lhes não dava importância e calaram-se. Voltou a paz ao lar conjugal. O medo de ir parar à cova obrigou mestre Manuel a desviar-se do vinho. Já ao dobrar dos 60 é que, uma vez, perguntou à sua consorte: “Lembras-te Mariana, daquela história da tumba”? “Lembro-me sim e Deus dê saúde a quem ta pregou”. Mestre Manuel nunca soube de onde lhe veio a lição. E a srª Mariana levou para a cova o segredo de curar borrachões…
_Apontamentos históricos do Padre Jorge de Oliveira (1865/1957), pároco de Alvalade entre 1908 e 1936, para uma monografia que não chegou a publicar.
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