Em 30 de Novembro de 1930, faleceu, em Alvalade, com 75 anos, Francisco Sobral, um dos tipos mais curiosos que por aqui têm passado. Exerceu o mister de coveiro por espaço de bons 15 anos. Era um alcoólico incorrigível e o espinho agudo de todas as Juntas de Paróquia (actuais juntas de freguesia), que tiveram de o suportar.
Tipo elevado, espadaúdo, olhos azuis, sempre mal enroupado e algumas vezes descalço. Era curioso ver que quando ele entrava e se demorava em alguma taberna, os fregueses começavam a sair, e copo por onde ele bebesse era marcado e ninguém lhe pegava, quando não acontecia ser partido. Era o desmancha-prazeres. Uma vez embriagado, em qualquer ponto de rua ou do campo, se deitava. E muita sorte tinha quando o Regedor ou o Cabo da Guarda, o metiam na cadeia.
Por bastantes vezes a Junta em sessão, o chamou para o repreender pelo abuso do vinho, pela linguagem desbragada ou pela sua apresentação miserável. Ouvia silencioso, mas de vez em quando, soprava. Terminada a reprimenda ia buscar a enxada, a pá e o picarete do cemitério, entrava na sala e dizia: “Agora, enterrem vocês”. E, como ninguém queria tal encargo, a Junta deixou de o repreender, para não ter de o chamar novamente.
No dia 1 de cada mês, o tesoureiro já sabia que apanhava escovadela grossa do Sobral, que ia “buscar o mês”. Usava ele e abusava de tal vocabulário, ora vesicante, ora drástico, que o encargo do seu pagamento foi transitando de uns para outros, à medida que se iam saturando de tão importuna visita. Não sei porquê, também me chegou a vez, mas nunca na minha presença, fez uso de tão celebrado vocabulário.
Tratava-me por “Senhor Calros” não sei porquê, nem lho perguntei. Notei que, na primeira vez, que lhe entreguei “o mês” como ele dizia, não estava embriagado, o que já não sucedeu na vez seguinte. Entreguei-lhe o ordenado, mas fui-lhe dizendo que não deveria aparecer-me naquele estado, sob pena de lhe não pagar.
– “Mas, olhe lá, senhor Calros, como é que uma pessoa há-de abrir uns covões, tão fundos, numa terra tão rija, sem ter espírito”.
– “Mas, você bem vê que parece mal aparecer nesse estado, por ocasião dos enterramentos. Já o tesoureiro me disse que saiu de lá envergonhado com o triste papel que você estava fazendo”.
– “Então esse mariola diz isso? Pois eu não o tenho visto, tantas vezes, dar beijos na preta, e dá-lhe cada um, que a emborca”.
– “Além disso dizem-me também que você falta ao respeito aos cadáveres que enterra – “Patifes” e que, no enterro de F…você foi grosseiro…”.
– “Grosseiros são eles. Que grande canalha! Eu não os trato mal, converso com eles e desse senhor, o que fiz foi despedir-me dele, e dar-lhe os agradecimentos por um favor que me fez… Passei lá pela Herdade, num Inverno, e apanhei um feixinho de lenha para me aquecer à noite. Sabe o senhor Calros, o que ele me fez? Obrigou-me a largá-lo. Então eu não lho devia agradecer? Ora, essa é boa”.
– “Mas essas coisas não são para tais ocasiões. Não beba. Deixe-se disso”.
– “Mas ó senhor Calros, o senhor não gosta de vinho?”
– “Gosto, sim, mas bebo-o com conta peso e medida”.
– “Apoiado”.
– “Até faço mais, misturo-o com água”.
– “Asneira”.
– “Asneira porquê?”
– “Asneira porque estraga a água e estraga o vinho”.
Quando havia enterro de pessoa grada e grande acompanhamento, já se sabia que o Sobral tinha o rabecão afinado para cantar a ária da “canalha dos ricos”, como ele dizia. Tinha seu chiste às vezes. Apareceu-me, numa ocasião, muito enrolado na manta, com má cor, a buscar o mês.
– “Você está doente?”
– “Tenho para aqui umas febres de má raça, que me não largam”.
– “Vá ao médico e trate-se, homem”.
– “Não quero nada com eles, eu bem sei o que eles para lá me mandam. Médicos, só conheci um que era daqui (apertão na orelha). Era o Dr. Carneiro, que já lá está. Aquilo é que era um home que tratava bem a gente, e amigo de reinar… mas numa ocasião saiu-lhe o gado mosqueiro… Eu tinha estado doente, e fui à consulta para ele me dar alta. Estava lá uma rapariga esperando. Quando lhe chegou a vez, foi: “Então a menina de onde é? – Sou do Cercal. Aonde mora? – Na Cabeça da Cabra”. O Doutor que era reinadio, perguntou-lhe: – “A menina sabe o que as cabras têm na cabeça?” – “Sei sim, senhor Doutor, é o mesmo que têm os carneiros”.
“Ó senhor Calros, aquilo é que foi rir! Um deles até fugiu para a rua, para se rir mais à vontade”. Nesse dia, o amigo do Dr. Carneiro não quis mais reinação… Coitado! Também lhe chegou a vez, e, provavelmente, lá está conversando com os companheiros como ele costumava dizer.
_Apontamentos históricos do Padre Jorge de Oliveira (1865/1957), pároco de Alvalade entre 1908 e 1936, para uma monografia que não chegou a publicar.
Outro magnifico texto do Padre Jorge de Oliveira que a Alvalade.info nos oferece, obrigado Luis.
No meu tempo, o 1º Coveiro de que me lembro é o Zé Paquete e sua esposa Maria.
JRN
Bonita história, Alvalade tem coisas antigas lindíssimas!