Parece que foi ontem – crónica de Eduardo Olímpio

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Olhe meu senhor: eu cá de política não percebo nada: já estou velha e só lhe sei dizer que a nossa vida aqui tem sido uma cataplasma de misérias. A gente aqui passou coisas que vossemecês lá na cidade nem sonhavam, quanto mais acreditar! Fominha, meu senhor, muita fominha passou a gente aqui sem se queixar. Queixar a quem, meu senhor, se todos padecíamos do mesmo mal? O meu homem que Deus tem chegou a empenhar o relógio de algibeira, um cortebert, parece que era assim que se chamava, por cinco mil reis, para a gente poder comer: eu e mais nove filhos que a vida nos deu. E olhe que se ele não tinha mais amor àquele relógio do que à vida andava ela por ela. Aqui a comadre Bia sabe: duma vez fomos as duas mondar trigo a Conqueiros, fizemos meio dia e o manageiro deu-nos um tarro com almece para termos almoço em casa. Água rala, restos. Foi a paga de meio dia de trabalho a esgarçar e a gente ainda agradecia, meu senhor, a gente ainda agradecia. O meu companheiro morreu por via dum catarral: esteve dois anos a tossir em riba dum catre sem poder ganhar um tostão que fosse: eu é que tive que fazer de pai e de mãe a nove gaiatos esse tempo todo. Já quase no findar dos padecimentos pediu-me que o levasse ao doutor Evaristo de Grândola, era lá uma fé, coitado, mas esse homem que era o que se podia chamar um santo já nada pôde fazer pelo corpo dele e daí a um mês tive de vender a marrã e empenhar-me até às orelhas para pagar caixão e cova. É assim meu senhor: a vida do pobre é assim. A gente já nem se queixa dos males que passou: a gente só podia era que quem manda não se esquecesse da gente nesta mudança que está a haver com o 25 de Abril.
– O senhor que vive lá por Lisboa não podia alembrá-los?

_Eduardo Olímpio

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