Eu conto como era: ao cimo da ladeira do Quedas, o Adalcino ou o Zé Cabrita gritavam: – Está uma camioneta atascada na ribeira dos Coitinhos! E a gaiatagem sorvia o ranho ao mesmo tempo que sorvia o ar e desandava por ali abaixo a cem à hora: eram seiscentos metros bem puxados que o Joaquim Drago (que é feito de ti, ó pernalta?) papava a todos sem sequer suar, com mais de vinte metros de avanço. E calhava sempre certo: era a camioneta do Mestre André, o espanhol simpático que de seis em seis meses aparecia na vila com aquele bruxedo mágico: o “cinema sonoro falado”, como ele dizia. Eram sempre fitas do Tom Mix, a Severa, ou aquele com a Império Argentina que pôs a sala (coitadinha da casota, a chamar-lhe isto…) cheia de ciganos a gritarem “olá! olé!” perante a nossa danação de não podermos ser ciganos ao menos naquela noite. Pisga-te, como ela bailava (lembrou-me agora o nome de repente: era Cármen, a de Triana.)
Pois era assim: o pai do Zé Cabrita, o primo Cabrita-Guarda-Republicano, levava-nos a mim e ao Zé debaixo do capote da farda, com a cumplicidade do Mestre André, tá visto: a gente é que vivia aquilo como se fosse mesmo aventura com risco de vida…
Começava a fita. Mestre André dava à manivela e ia comentando no seu sotaque espanholado de faz-tudo: – O rapaz é o do chapéu branco. O cavalo chama-se Faísca. O cavalo que vai à frente é o que corre mais. Este filme sonoro falado chama-se “Entre Raptos e Murros”.
Ena, pá, o que tu foste dizer, Mestre André do cavalo que vai à frente porque corre mais: no outro dia, no largo da feira, entre raptos e murros, era eu e o Adalcino, era o Zé Cabrita e o Drago, eram nossas mães, era o Doutor Vitório a pôr mercurocromo, eram os calções em farrapos, eram olhos à belenenses.
Mestre André do cavalo Faísca já morreu.
O Doutor Vitório do mercurocromo já morreu.
Mas não morreu o largo da feira nem o Tom Mix que foi crescendo dentro de nós contra as ciladas da vida. Porque a verdade é só uma: se houver um Tom Mix dentro da gente, o cavalo Faísca aparece sempre.
– E corre mais porque vai à frente…
_Eduardo Olímpio
Julho de 2013
Artigo relacionado: A Ladeira do Quedas, de Eduardo Olímpio
Uma delícia este texto!
Muito obrigado Eduardo Olímpio por nos continuar a brindar com a arte da sua escrita. Gostei muito!!
:)))
Quero apenas dizer que este pequeno texto de Eduardo Olímpio foi-nos enviado pelo autor, por email, há dois dias atrás e é inédito. As memórias de Eduardo Olímpio são um pouco nossas também, enquanto alvaladenses. Todos ou a grande maioria de nós, já pisámos o mesmo chão e vivenciámos os mesmos locais do autor, o mais consagrado e prestigiado de sempre nascido e crescido em Alvalade, que certamente um dia terá a homenagem e o reconhecimento que justamente merece da sua terra e do seu concelho de nascimento.
_LPR
Quanto são puras e saudosas, ou até saudosistas as palavras de Eduardo Olimpio….. E foi sempre assim. Até na saudade pelos gestos ternos de sua mãe, ou num parágrafo do seu livro “Um Girassol chamado Beatriz”…ficou entendido a meio caminho: – naquela clara nesga dum trajecto que vai duma borboleta à amizade”.
Ou então o término de outro seu livro “Às cavalitas do tempo”…”a nossa maior fortuna é gostarmos tanto uns dos outros “…guardava no bolso estas palavras de sua mãe…sentimentos nobres nobres que nos foi transmitindo nas páginas da sua vida…..parabéns Alvalade, pois dormes no coração de muitas amizades…
Adorei…simplesmente adorei.
Adorei…
Este texto demonstra mais uma vez que Alvalade está cheia de talentos que nos enchem a alma de orgulho. Parabéns e que os mais novos tenham força e vontade para seguir os mais velhos para que as tradições dessa Terra sejam recuperadas e mantidas para orgulho também das outras gerações seguintes.
Há muitos jovens nessa Terra com muita sabedoria. Parabéns e força para o progresso.