Era a senhora Maria Grandona quem as mulheres, geralmente, chamavam quando se encontravam nos apertos do parto, e daí o ser conhecida e havida por parteira. Não vá alguém supor, atendendo ao seu apelido que fosse alguma virago. Nada disso; era de estatura meã, magra e tomava rapé. Tinha sempre que fazer, porque além do encargo de aparar crianças, como ela dizia, era também benzedeira…
– Então senhora Maria, muito que fazer?
– Olhe, já hoje apari três. Um menino macho e duas meninas fémeas.
– Bonzinhos?
– Três estrelas.
– E as mães que tal?
– Estão bem. A Xica do Inaiço é que esteve um bocado encalhada… Eles já queriam chamar o médico, mas eu pus-me ao alto: ele a entrar por uma porta e eu a sair por outra… Eu bem sei como elas mordem…ele é água quente, ele é água fria, ele é panos, ele é lençóis, ele é álcool, ele é isto e mais aquilo que uma pessoa emparvece no meio de tanta mixórdia. Afinal para quê? Dêem tempo ao tempo, que o lá está há-de sair…
– E agora, há por aí muitas crianças doentes?
– Bah!… Nem por isso. A Biazinha da Intóina é que teve ontem um ataque de Lua, mas já a benzi e está melhor. A Zabelinha,- lembra-se aquela menina tã perfeta filha do Chaparro? Essa é que está mal com um ataque de lua brava. Já a benzi, mas ali anda coisa… Estas maganas! Eu mandasse, gente desta devia ser desterrada para onde não houvesse gente.
– Então o que foi senhora Maria?
– Ora o que há-de ser? É aquela porca, aquela tronga daquela Grigória que fez aquilo ao pobre anjinho, que até faz estarrecer a gente.
– Mas, que fez ela?
– Então não sabe? Ela anda metida com o mafarrico, é bruxa. E vai daí, vem de lá com os olhos cheios daquela luz do inferno, que as primeiras crianças que apanham, tenrinhas como são, ficam trespassadas. Grande magana! Precisava morta. E o home dela é outro que tal, é lambesome, anda de noite a fazer de cão, a uivar como os lobos. Já o tenho ouvisto… Jesus, Santa Maria, água benta. De noite, nunca passo por aquela porta sem ir acompanhada dum home com um bom marmeleiro e eu levo uma figa em cada mão. De dia quando não posso ir de roda, só passo a rezar o credo em cruz, entremeado com a esconjura: some-te diabo para as profundas do inferno!
O que é certo é que a bruxa da Grigória e o lambesome do marido têm sido regularmente apalpados por alguns que abundam da psicologia da senhora Maria Grandona, e se julgam prejudicados. Certamente a Senhora Maria Grandona, que já não é número dos vivos, não estará no inferno porque, sem dúvida, levou as figas, uma em cada mão… Pertencia à senhora Maria Grandona, no seu mester de parteira, levar as crianças que aparava para serem baptizadas na Igreja. O seu traje habitual, era saia e xaile pretos e um lenço de seda com ramagens magenta que punha na cabeça. No braço esquerdo, por debaixo da criança que conduzia, ia pendurada a melhor toalha, com a mais vistosa renda que havia em casa, ou na vizinhança. Na igreja, tudo corria normalmente, mas quando o pai, os padrinhos, o sacristão e o pároco iam para a sacristia fazer o registo, então é que a senhora Maria Grandona se fazia a olho, e era interessante ouvi-la no seu monólogo:
– “Parece que têm medo de gastar água… uma coisa que Deus Nosso Senhor nos dá com tanta fartura… antigamente é que se baptizavam como devia ser… era de mergulho… mas eu já te arranjo…”, e ia direita à pia de água benta, e só voltava depois de ter encharcado bem a cabeça da criança. A seguir, sentava-se no supedâneo do altar de S. Marcos, cuja imagem tem um leão aos pés, punha a touca no inocente e, feito este serviço, começava outro, não menos interessante: elevava a criança bem alto, punha-se em bicos de pés, e dava com ela duas sonoras caroladas na cabeça do bicho, uma com o parietal direito e outro com o parietal esquerdo, dizendo: “Deus te faça mansinho como aquele borreguinho que ali está” (o cordeirinho de S. João Batista, que está do outro lado). Chegado a casa, o cortejo, entregava a criança à mãe, dizia-lhe o nome que lhe fora posto, e, confidencialmente: “Olhe que lá a baptizei como devia ser, e lá lhe dei duas cabeçadas no bicho do santinho, que é pró fazer mansinho”. “Muito obrigada senhora comadre”. E a senhora Maria Grandona, depois de farto jantar e da melhadura dos padrinhos, lá vai para casa abraçando o belo pão de família cozido naquela manhã, acompanhado da competente linguiça e toucinho, para o jantar do outro dia.
_Apontamentos históricos do Padre Jorge de Oliveira (1865-1957), pároco de Alvalade entre 1908 e 1936, para uma monografia que não chegou a publicar.
Adorei. Formidável!
O dia para mim começa quase sempre com as vossas leituras.
Obrigado.
Até breve.
Simplesmente delicioso este texto.
Os textos do Padre Jorge são baseados em factos verídicos que nos revelam as tradições antigas e como se vivia em tempos passados em Alvalade.
Não obstante todas as pesquisas históricas, e tão importantes, que o Luís Ramos faz chegar até nós, seria uma pena se não lhe fossem facilitados estes escritos maravilhosos que temos o privilégio de ler.
Obrigada Luís Ramos, obrigada também a quem lhe faculta estes escritos.
Mais uma vez obrigada por esta “grandona” descrição….está numa alentejanisse magnifica….era assim mesmo que se falava e se entendia…..a verdade é que as coisas lá iam funcionando…
Continue Luís a transcrever-nos estes textos e a presentear-nos com aquilo que se viveu na n terra….foi Deus que aí colocou o Padre Jorge para podermos ter, ainda hoje, vivas essas estórias…
M.D.Carvalho.
Muito interessante este artigo.
Sabe-se em que ano, ou década, foi escrito?
Grato;
Lito
De momento não tenho essa informação mas é uma estória contemporânea do Padre Jorge, quase com toda a certeza.
_LPR
Adorei este artigo…Muito agradável a sua leitura.
É sempre agradável algo da cultura ancestral tanto mais quando as mesmas nos dão momentos divertidos.
Obrigada pelo vossa dedicação.
Mariana
Realmente havia a simplicidade da palavra mas a grandeza das pessoas como esta Maria enche-me as medidas, amo demais o Alentejo estas e outras Marias são o meu orgulho.
O dialecto alentejano existe, não é calão como por vezes é chamado.
OBRIGADA ADOREI ADOREI ADOREI